Priscila, artesã: pé na estrada desde os 15 anos de idade.

Dando continuidade à minha coluna, começo agora o segundo capítulo do meu livro Artistas de rua além dos clichês. Nesse texto, mais alguns trechos que considerei importantes desse capítulo, onde eu inicio minha caminhada dentro da cidade de São Paulo em busca dos artistas de rua.

Priscila Guardanini. Foto: Adriana Vicente

“Saindo da Região Metropolitana e indo direto para a Zona Sul da cidade de São Paulo, no Jabaquara, encontro a artesã Priscila Guedes Guardanini, de 32 anos, na casa onde por enquanto reside, em uma avenida calma que fica a poucos metros da estação que leva o mesmo nome do bairro (…). No dia marcado para nosso encontro, a artesã estaria em casa fazendo algumas encomendas (não trabalharia vendendo suas peças nas ruas próximas ao metrô Conceição, como de costume), e foi lá que me recebeu (…). A porta de entrada de sua casa dava acesso ao primeiro cômodo da casa, uma espaçosa cozinha. Por ali chegava-se aos quartos de seus quatro filhos — Amanita (08), Davi (07), Luna (04) e Raul (03) —, à igualmente espaçosa sala e ao quarto de Priscila e seu marido, o também artesão Thiago Tanzi, de 26 anos, mais conhecido como “Ogro” (…). A rotina da artesã mudou muito depois do nascimento de seus filhos. Sua primeira filha, Amanita, nasceu quando ela tinha 25 anos.

— Deu pra eu curtir bastante desde que eu comecei a viajar. Agora com os quatro tem que segurar a bronca, né? Mas aí eu deixo todos juntinhos e já era, vamos conhecer o Brasil.

Priscila Guardanini. Foto: Adriana Vicente

Priscila nasceu em São Paulo, mas morava em Minas Gerais quando, aos 15 anos, saiu de casa:

— Eu era adolescente e estava enjoada de tudo. Quis sair pra viajar e conhecer lugares e pessoas.

Foi então para São Tomé das Letras e lá aprendeu a fazer pulseiras. Eram seus primeiros passos para se tornar artesã (…)

— Nós já moramos na roça lá em São Tomé com as crianças. Era um cômodo só, pau a pique, super simples. A gente ia só uma vez por semana à cidade para comprar alguma coisa que precisava. Era muito bom. Depois moramos em Poços de Caldas em uma casa linda, super rústica, com tijolo, chão de madeira e tudo (…). Ficamos dois anos lá, até que ano passado tomaram nossas coisas…

Priscila e Thiago expunham em Poços de Caldas desde que tinham se mudado para a cidade. Mesmo sabendo que a fiscalização costumava apreender os artesanatos da malucada, eles ainda assim arriscavam. Porém, em meados de novembro de 2015, enquanto ela e mais um amigo expunham suas peças na rua, policiais chegaram e apreenderam tudo. Quando pedia para o policial devolver seus artesanatos, argumentando que aquele era o trabalho com o qual sustentava os filhos, eles foram irredutíveis, chegando a ameaçar prendê-la também.

— Eu não consegui aceitar isso. Fui embora, isso foi em uma sexta-feira. No final de semana minha cabeça tava a mil. Eu estava em casa sem meus trampos, sem dinheiro, com quatro crianças… Pegaram tudo, não tinha nem como eu comprar a matéria-prima pra fazer mais (…)

— Depois dessas apreensões nós fizemos um protesto muito louco, e lá nunca tinha acontecido isso. Chegamos às 12h para fazer o protesto, que acabou por volta das 17h. Todas as emissoras de TV da cidade estavam lá. A gente conseguiu ter visibilidade e o prefeito resolveu chamar a gente pra conversar. Então conseguimos a devolução do material sem ter que pagar a taxa e conseguimos expor novamente na rua. Eu saí de lá porque já estava enjoada da cidade, dois anos em um lugar já me dá vontade de ir embora. Mas a galera agora consegue expor tranquilo lá (…)

A malucada em Poços de Caldas no dia dos protestos. Foto: arquivo pessoal

A falta de conhecimento

O artista de rua, principalmente o artesão, ainda sofre muito preconceito e repressão pelas ruas das grandes cidades do país. Isso se dá pela falta de conhecimento e pelo senso comum de acreditar que o artesão não tem responsabilidades e fuma maconha o dia inteiro. Voltando à Priscila:

— Às vezes quando a gente ia expor na Paulista tinha muito barão que falava que estava se sentindo na Jamaica, que qualquer hora seria roubado…

Há grande desconhecimento e uma confusão de ideias quando falamos sobre os artesãos que trabalham nas ruas, sujeitos a julgamentos e estereótipos. São, por vezes, confundidos por algumas pessoas como mendigos ou pedintes:

— O mais impactante para mim foi quando tomaram minhas coisas em Poços de Caldas, mas sempre acontece alguma coisa preconceituosa. Uma vez barraram nossa entrada em um restaurante. Íamos comprar marmitex, mas já foram expulsando a gente dizendo que não tinha e tal, sendo que na porta de entrada estava escrito o valor da comida. Acabamos indo embora sem comprar nada.

O termo hippie, que foi transformado em uma palavra pejorativa para se referir a alguns artistas de rua, faz parte do movimento de contracultura dos anos 60, que tinha como ideias principais a conexão com a natureza e o desprendimento de bens e riquezas materiais como forma de protesto contra o capitalismo. Você deve conhecer a frase mais famosa do movimento, “peace and love”, ou paz e amor, tradução da filosofia de vida de seus seguidores. O movimento hippie teve início nos Estados Unidos, entre os anos 50 e 60 quando, após a Segunda Guerra Mundial, o país se consolidou como a maior potência capitalista, dando origem ao modo de vida conhecido como “American Way of Life”, baseado nos hábitos extremos de consumo dos americanos. Dessa forma, surgiam também grupos de jovens, em sua maioria de classe média e alta, que contestavam esses hábitos exacerbados de vida, bem como tinham novas visões sobre amor, sexualidade, política, artes, preconceito, etc., buscando construir uma sociedade alternativa à existente na época. Os primeiros grupos a representar essa nova cultura se chamavam beatniks, precursores dos hippies, que já nos anos 50 criaram novos padrões e maneiras de contestar o sistema vigente. No Brasil, o movimento foi associado a manifestações culturais como o Tropicalismo, liderado por artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Zé.

Embora artesãos e outros artistas que trabalham nas ruas possam se inspirar em movimentos culturais de contracultura,os amigos de Priscila se conhecem e preferem ser chamados de “malucos de estrada” ou “malucos de BR” (…). Em muitos estados, a repressão, violência e preconceito contra os artesãos é igual. Eles mal chegam e já são colocados de volta nas vans ou nos ônibus. Muitos policiais sequer os deixam ultrapassar os limites da rodoviária, de acordo com Priscila.

— No Rio Branco (Acre) os caras já te colocam na Kombi, e em outras cidades também. Isso acontece muito. A polícia te vê e te leva para os escritórios de assistência social na própria rodoviária e já te encaminham de lá para a próxima cidade, dão passagem e tudo, praticamente te expulsam (…)

Após nossa breve conversa no sofá, Priscila me convidou para conhecer o restante da casa e o ateliê que divide com o marido. O cômodo fica do lado de fora da casa, e para chegar até ele atravessamos um jardim no quintal dos fundos, onde Thiago preparava uma futura plantação de milho. A área é ampla e o casal costuma receber amigos ali (…)

Priscila costuma expor seu trabalho no metrô Conceição por ser mais perto de sua casa, mas seu marido expõe em diversos locais, desde a Avenida Paulista até calçadas de faculdade e festas, como as raves. Nessas festas eles costumam vender todas as peças rapidamente, até mesmo as mais caras (…). Nas festas grandes, a venda é boa, mas eles ficam sempre atentos aos roubos, que são frequentes nesses lugares, pela grande quantidade e fluxo de pessoas (…)

Vida pelo Brasil

Priscila e Thiago já moraram em diversos estados do país com as crianças. Excetuando-se os períodos em que ela ficou grávida, a família nunca permaneceu no mesmo local por mais de dois anos. Seus filhos já estão adaptados à cultura nômade dos artesãos. Na questão escolar, sentem falta só dos amigos. Priscila tem o cuidado de matriculá-los nas escolas de todos os estados que costumam ir para morar (…)

Priscila e seus quatro filhos

— Com meus dois filhos mais velhos a gente viajou mais e sem carro, íamos de cidade em cidade, todos juntos. Mas algumas pessoas não gostam, reclamam, falam mal dessa nossa vida. Já vieram pedir nossos filhos várias vezes. São crianças bonitas, todo mundo fica de olho, e também pelo motivo de achar que a gente não cuida direito deles só porque temos um estilo de vida diferente.

Priscila e seus quatro filhos

O casal pretende juntar dinheiro para trocar de carro e viajar. Eles têm uma Parati antiga que fica estacionada em frente à casa. Um filtro dos sonhos enfeita o interior do carro, que aparenta ser antigo e estar quebrado.

— A gente vai parando e vai conhecendo os lugares, essa é a graça. Algumas cidades têm lindas cachoeiras, outras uns bons restaurantes, lagos, e assim vamos conhecendo o Brasil (…)

Perguntei se ela já tinha enjoado do que fazia, ou de viajar tanto, mesmo já prevendo a resposta.

— Quando eu ficar mais velha é que vai me dar vontade mesmo, porque meus filhos já estarão maiores. Vai ser mais fácil ainda, até parece que eu vou ficar em casa curtindo doença, vou dar meu rolê. Só vou parar se eu tiver muito velhinha…

O relógio marcava 18h e a nossa conversa estava se encerrando. Priscila precisava buscar seus dois filhos mais velhos na escola. Chovia muito. Ela pegou seu guarda-chuva e outros dois menores, um para cada criança, além das capas de chuva — o típico cuidado de mãe. Naquela tarde constatei o que eu já sabia: tanto Priscila, quanto os demais artesãos que trabalham pelas diversas ruas desse enorme Brasil, são tão normais e possuem tarefas consideradas igualmente normais quanto qualquer outra pessoa quetrabalha de carteira assinada dentro de um escritório durante ohorário comercial: “A diferença é que eu me mudo muito”, diz. Acabei trazendo um colar feito por ela para casa, também como forma de recordação daquele dia. É bom ter algo para me lembrar da jovem artesã depois que ela se jogar com a família pelas estradas da vida outra vez.”

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