Antes de virar aplicativo de rede social, frases largadas em murais como indiretas sugestivas para ex-namorados e afins, Caio F. era jornalista e cronista – e meu autor preferido lá pros meados de 2004/2005, oito anos depois de ser vencido pelo HIV. Foi ele quem me fez achar que podia escrever com tamanha leveza e honestidade tão bruta que faria qualquer um chorar sem nem perceber as lágrimas e, ao mesmo tempo, ser jornalista. É claro que, depois de um tempo, certos sonhos acabam sendo trocados por algumas notas na carteira e contas a pagar, aquela tal roda-gigante, a qual Caio se referiu lá no conto “Dama da Noite”.  Foram muitos anos de textos dedicados, publicados no Estado de São Paulo, que agora estão no livro “A vida gritando nos cantos – crônicas inéditas em livro (1986-1996)”, lançado pela Editora Nova Fronteira.
Confesso que comprei por impulso nostálgico, que me fez ter vontade de ainda ter aqueles 17 anos e crer, ou melhor, não crer em nada, e viver apenas. Depois de ler algumas páginas, a vontade foi de olhar para cima “como se acreditasse em deus” (mais uma frase da minha memória caioana) e fazer uma prece de perdão para esse ser, perdão por tê-lo abandonado por tantos anos.
O livro contém exatas 109 crônicas (sim, eu contei), com todo tipo de pauta: o cotidiano paulistano, os trabalhos jornalísticos, os amigos loucos, as noites no Madame Satã, a solidão, os artistas, até a falecida Claudia Wonder ganhou palavras de Caio, tudo regado à MPB – nem a velha nem a nova, apenas MPB. São textos que cobrem no máximo duas páginas, que podem ser engolidos e absorvidos sem dificuldades, cheio de referências facilmente idenficáveis por um paulistano ativo ou uma paulista interessada, como eu. Caio era gaúcho, mas ainda está para existir alguém que mais compreenda o céu de São Paulo do que ele.

Fique aqui com a crônica  “A vida é uma brasa, mora?”
Para ler ao som de

Uma esquizocrônica para Samuel Beckett
Na forma de caos.

Nuvens radioativas, pacotes econômicos: nunca fomos tão felizes!  terroristas líbios, uma colagem de Vicent Kutka, qualquer ponto do sensível, ah: resgates, punks no metrô, copos de vinho tinto, um blues de Bessie Smith, sauna japa na Liberdade, trocar de lençóis na sexta, Anjelica Huston de chapéu negro, aquele olhar chiquérrimo sobre o mundo, táxis, táxis, alguém no JB referindo-se aos “esfuziantes-anos-80” (?), cortes na seleção, leves paranóias, mas eu sei onde estou metido, gangs juvenis, a frase de Beckett dando voltas na cabeça: nenhuma dor, quase nenhuma dor – isso que é maravilhoso, velhinhos tocando Olhos Negros no Brahma, cartão-postal de Paris na cabeceira, tons dourados, folhas mortas, como te amei e não disse, Giovanni guilhotinado por amor, imperceptivelmente chegar à próxima face depois desta, talvez desprezível, graves paranóias, o relógio da Paulista marcando trágico, lento & inexorável o fim de domingo, sinto falta de você, hi-fi com Fanta: astral Bukowski, geladas fotos sensuais de Pedro Fedrizzi, alguém me chamando de “tiete-bem-pensante” (?), mas não pensem que não sei onde estou metido, pessoas cirandando em torno de um posto, madrugada de sábado no Bexiga, engarrafamentos de trânsito, pressa dentro dos táxis, dragão tatuado no braço, muito busto, muita coxa, Hélio que vai para a Europa, yuppies na Oscar Freire, Bruna Lombardi, Diadorim, homem-mulher, feijoada no Supremo, nenhuma importância, só porque sei onde estou metido, outra vítima da AIDS, parem de me testar: sou legal, cara, pizzarias entupidas de criancinhas, táxis, táxis, atriz argentina joga-se pela janela, e se eu dissesse de repente e sem pudor eu te amo? Patricia em prantos ao telefone, de pura transgressão beber litros de água mineral em pleno Madame Satã, quem me seduz? olhar com medo, olhar com perdão, olhar com interesse, olhar com náusea e paixão, e de jeito nenhum compreender nada de onde se está desgraçadamente metido, telefones que não param de tocar, Rê Bordosa minha amada à beira do suicídio, não esquecer comprar Gilette G-II, que falta faz Ana C. meu Deus do céu, palavras lindas na letra M do Aurelião, repetir fascinado metâmero, metasterno, metereoscópio, paranóias desenfreadas, tudo que você quiser, e táxis, táxis, monóxido de carbono, amigos solicitando estranhíssimas cumplicidades, copos e copos de vinho tinto, ninguém dizendo meu-amor, suspeitas, censura interna outra vez, palavrão não pode, esse filme que já vi e por isso mesmo sei onde estou metido, uma carta que não chega nunca, nossa, como estou me lixando, vela branca prô Anjo da Guarda, bate outra, sal de frutas, pó de guaraná, candidatura de Gabeira, sen-si-bi-li-da-de-ex-ces-si-va, meu caro: honestidade, epidemias, vírus, pestes, dengues, devia vender mais caro minh’alma inestimável, Toninho ameaçado pelos skin-heads, nenhuma solidariedade, azia na certa amanhã de manhã, saudade, saudade inútil o tempo todo de qualquer coisa indefinida, de alguém desconhecido, investigar preço secretária eletrônica, ter certeza que em algum ponto do caminho se perdeu e ponto, e pronto, acabou, e para sempre, querido e não tocado jamais, mobilizado pela raiva, por favor me leva daqui para que eu me esqueça de onde sei que estou metido, corrompido até o último hímen, já temos um passado, meu amor, me convida pra jantar em tua casa, bota Billie Holiday baixinho, depois me dá um beijo na boca, bem molhado, irrecusável, um sonho com Hilda Hilst, o texto, o texto, traí meu destino, companheira, empurrado pela desordem, sobrevivendo ao naufrágio, agarrado mísero e adjetivoso a meu pedaço de madeira flutuante, e agora chega, chega, let it be, let it be, baby, que la vie, en rose ou em black no duro – é sempre uma brasa, mora: o caos é a forma.
Quanto a vocês, salve-se quem puder. Porque quanto a mim, querida, querido, queridos – eu? Ah: eu juro por todos os santos que sei muito bem onde estou metido.

Escrito em 6 de maio de 1986

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