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Conto: Robson Alkmin | Ilustração: Filipe Rocha

“Sílvio, vou para os Estados Unidos estudar. Você vem comigo ou ficará aqui?”. Assim Manuela me intimou à beira da piscina do clube de natação onde eu treinava. Com seus braços cruzados, os olhos brilhantes semicobertos pela franja negra, o corpo indeciso para qual lado se inclinar e a respiração ofegante, enquanto mastigava outras palavras esperando alguma reação de minha parte.

Eu iniciando o treino, tirando a bermuda, arrumando o calção de banho, ajeitando os óculos, e fiquei ali, com um pé no chão me equilibrando, enquanto olhava para Manuela com a postura tal qual um policial num flagra. Escorreguei e caí. Não me voltei para o rosto dela, somente ouvi uma nova variante da intimação: “E então? Já tenho a passagem comprada, vou amanhã para a casa da Tatá em Nova York. Vou abandonar a natação. Você entendeu a situação? Irei com, ou sem você, não me importa”.

Eu me levantei com dificuldade, a gravidade da Terra me puxava, as luzes do ginásio piscavam, o barulho da água parecia uma maré quebrando na praia, olhava para baixo e via quatro ou oito pés em ziguezague, os meus e os de Manuela.

Namorávamos há dois anos ou nem, tanto faz, foi bom muitas vezes. Ela, também uma nadadora profissional, treinava no mesmo clube que eu, na mesma piscina, nos mesmos horários, nas mesmas competições, no mesmo ônibus e logo moramos no mesmo apartamento. Mas uma semana antes da situação acima, uma semana, veja só! Ela inventou de ir embora!

Eu não conseguia pensar noutra coisa naqueles dias. Não chorei, nem esperneei, não a acusei de traição, nem pedi que o cachorro ficasse comigo. Treinava aqui e faria a carreira juntamente com a ajuda do meu técnico na época. “Mesmo participando de competições internacionais, e daí? Eu vou lá e papo tudo mesmo, não preciso sair do Brasil!” Tentava me consolar para não sentir culpa. Para Manuela, nenhuma palavra saíra da minha boca até aquele momento. Meu silêncio nos matava.

Ajeitei o corpo e subi na prancha. Sentia todo o calor do olhar de Manuela me atravessando a coluna. Olhava para piscina azulada, não via nada a não ser a outra ponta, um lugar para chegar e voltar com alguma decisão. “Quando voltar eu te digo”, falei tremido e sem convicção. Pulei na água.

Não caía na água de maneira tão desajeitada desde meus oito anos, quando meu irmão mais velho me empurrou na piscina de casa e quase morri; papai me salvou. Tive novamente a mesma sensação e afundei. O corpo amolecia, o coração desacelerava, as pernas doíam pela queda, borbulhava desnorteado, tudo conspirava para a minha morte, talvez tivesse desejado isso a perder Manuela. Mas o corpo reagiu, o medo gerou o reflexo. Retomei logo a coordenação submerso na água morna. Vi as luzes distorcidas no teto do ginásio se redefinirem ao poucos.

Nadava bem devagar. Espalhava a água com os braços e as mãos como se remasse num barquinho à deriva no mar. As pernas moviam-se sonolentas. “Ah, a piscina poderia não ter fim.” Delirava. A dor do amor parece infinita no começo. “Por que não levei a sério a decisão de Manuela? Por que neguei que ela pudesse me abandonar?” Perguntava-me sabendo a resposta. Gostava de me enganar. Deixava para depois os sentimentos complicados. Pensava no fato de que talvez nunca tivesse amado Manuela. Aceitava, negava, aceitava, negava, mas logo concluía resignado: “Eu a amo.”

Eu tentava encontrar a paz dentro d’água. Queria me sentir seguro do que faria, como nas competições. Torturava-me lembrando como havia deixado exacerbar as diferenças e brigas com Manuela. Reconciliávamos sempre. Mas o vaso quebrado várias vezes acumula mais rachaduras, os pedaços ficam pequenos demais para serem colados de volta: a peça fica sem forma. Manuela estava de saco cheio de tudo!

Manuela e nadava; Manuela e nadava; Manuela e nadava… Ia chegando à outra borda da piscina, a distância se esgotava, estava exausto. Não dei a volta. Fiquei um tempo agarrado à borda com a testa na parede da piscina e a água tocando meus lábios. Fiz o movimento para tirar a touca da cabeça, não a usava por esquecimento. Passei a mão pelos meus cabelos soltos como cavalos selvagens encharcados numa chuva, e essa rebeldia me inspirou.

Uma luz se acendeu em minha mente. Saí da piscina. Sentia meu semblante mudado, mas não queria me olhar nos vidros que cercavam o ginásio. Fiz o percurso de volta andando. Observava meus pingos nos ladrilhos do clube – um homem machucado que deixava suas marcas para trás – quis sorrir por tão pobre imagem; não consegui. Pessoas passavam por mim: crianças brincavam, jovens riam, velhos resmungavam. Eu não encarava ninguém, não queria que lessem meus olhos.

Aproximei-me do começo da minha via crucis com receio de encarar Manuela. Levantei meu olhar, e ela não estava. Compreendera que eu havia desistido dela ao sair da piscina. Vi gotas perto de minha mochila, pensei que fossem lágrimas deixadas por Manuela. Com o peito em chamas, peguei minhas coisas e fui embora, vazio.

Isso tudo aconteceu há quatro anos. Nesse tempo ganhei várias competições, namorei duas garotas, mudei de apartamento por três vezes, morei em dois países, minha mãe morreu, comecei duas faculdades, aprendi espanhol, fui roubado cinco vezes (todas enquanto nadava), o meu cachorro é o mesmo e há dois dias recebi um email que me fez sorrir: “Estou voltando, quero te ver, muito, muito! Beijos, Manuela”.

Desta vez, nadarei na volta.

 

 

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