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Conto: Gabriel Lima | Ilustração: Filipe Rocha

Era impossível para Aline dizer o que a dominava naquele momento: o álcool ou a vontade repentina de desaparecer. De uma hora para outra a mão que segurava o copo americano começou a tremer enquanto os dedos da outra se contorciam de ansiedade no bolso da calça. Não queria mais estar ali. Logo Carlos, Jorge, Fabiana e Lucas se tornaram borrões ao invés de colegas de trabalho; e a rua em frente ao bar se tornou o caminho mais atrativo que já havia visto. Foi assim que, num impulso, Aline pousou o copo no balcão, entrando sem querer na frente do Lucas e interrompendo a conversa sobre a nova recepcionista do escritório da qual ninguém lembrava o nome. Todos pararam, desmancharam aos poucos os sorrisos do último trocadilho e olharam surpresos para ela, que tirou uma nota de vinte da bolsa, enfiou no quadradinho de vidro do caixa e foi embora, sem dizer uma palavra sequer.

Aline andou até sua casa dando os passos mais firmes que as calçadas da Avenida Paulista aguentariam em uma quinta-feira calorenta. Pela primeira vez fizera o percurso trabalho-casa a pé. Precisava daquele tempo. A ideia de jogar tudo para o alto já havia pairado pela sua cabeça inúmeras vezes, principalmente nas conversas pós-expediente em frente ao Copo Sujo, mas nunca com tanta força. Não ao ponto de fazê-la arrumar suas malas assim, antes mesmo da sexta-feira começar. Usou suas últimas forças do dia nessa tarefa. Depois do banho morno e demorado, seu suor levemente etílico deu lugar a um cheiro carinhoso de erva doce. Aline se jogou na cama e adormeceu, só de toalha.

Na manhã seguinte, acordou descoberta. E surpresa com a ausência da ressaca. Vestiu-se. Abriu geladeira, armário e não viu nada interessante. Carla, sua roommate, havia viajado na semana anterior e, desde então, nenhum mantimento havia entrado no apartamento. Aline foi até a fruteira, pegou uma maçã argentina e se jogou de novo na cama. O alarme do celular tocava avisando que aquela seria a hora de sair de casa para trabalhar caso ela ainda pretendesse fazer isso.

Aline tinha o olhar perdido enquanto comia. Como se o seu corpo estivesse economizando energia dos olhos para abastecer os pensamentos. Até que percebeu o notebook em cima da raque, perto da TV, e lembrou que tinha assuntos a resolver. O que nunca havia passado pela sua cabeça era que sua vida poderia se resolver temporariamente apenas com uma carta, dois telefonemas, uma passagem para Florianópolis e um SMS. Ou dois.

Deixou um envelope para Carla com sua parte do aluguel daquele e do próximo mês, junto com um bilhete de despedida e desculpas. Ligou para sua supervisora pedindo demissão sem dar muitos esclarecimentos e, logo em seguida, discou o número do anúncio que ofertava uma charmosa cabana na Praia dos Ingleses. É perfeita, pensou, encantada com as fotos no site de classificados. Reservou por um mês, para alegria do proprietário. Por último ficou a parte difícil: enviar o SMS para Douglas, garoto que apareceu um dia no Copo Sujo e que de certa forma a conquistou com seu jeito brincalhão. Sem saber muito bem o porquê, se sentiu na obrigação de dar explicações, mesmo sabendo que não tinham nada sério. Se importava mais do que gostaria. Aline desligou o celular depois de enviar a mensagem, para evitar que Douglas ligasse em seguida.

Aline: Passarei uns dias longe. Provável que a gente não se veja mais. Fica bem. Bjo!

Quanto à família, Aline preferia que eles ligassem quando sentissem sua falta. Para ela, a coisa desagradável de largar tudo era ter que dar justificativas. Como se não bastasse a sua imensa vontade de mudar de vida. Assim, preferiu dar as explicações mais demoradas em outra hora.

Douglas: Como assim?

Após quase doze horas de viagem, um livro do Manoel de Barros lido de cabo a rabo e uma bunda quadrada, tudo o que Aline queria era tomar outro banho morno e se deitar nua. Ter dormido assim na noite anterior tinha sido prazeroso e ela não via a hora de repetir. Fez um acordo consigo de tentar apreciar mais essas sensações simples que a vida oferece.

Douglas: Tá ai? Queria falar com você antes de você ir…

Aline andou até a área de desembarque da rodoviária Rita Maria dando os passos mais felizes que o chão de Santa Catarina já havia sentido. Não estava nem há dez minutos ali e já se sentia melhor. Entrou no taxi. O moço atlético e de barba rala no volante se chamava Edgar e era o taxista mais jovem com quem Aline já havia andado. Um clima de flerte tentou se espalhar pelo carro lentamente enquanto o taxímetro avançava. Alguma coisa em Edgar fez Aline lembrar de Douglas. Talvez o queixo pontudo ou as sobrancelhas grossas. Pensou no que ele estaria fazendo naquele momento e ficou calada durante toda a viagem, observando o que as margens da SC-404 tinham a oferecer. Após 25 minutos, Edgar finalmente anuncia: chegamos!

Douglas: Tô preocupado, Line. Manda notícias.

A cabana era menos bonita do que nas fotos, mas ainda tinha seu charme. Uma rede azul e um tapete “bem-vindo” recepcionavam quem se aproximasse. Dentro, os lençóis brancos, o fogão vermelho fusca e outros detalhes contrastavam com o marrom-madeira predominante. Aline trancou a porta, deixou as malas no chão e foi conhecer o ambiente. Passou pelos dois cômodos até chegar ao banheiro. Abriu uma das torneiras, viu o chuveiro tossir e expelir água fria que logo foi esquentando. Deixou-o ligado. Voltou até a mochila para pegar a toalha, o sabonete e, enfim, entrou no banho que havia planejado durante toda a viagem, inclusive durante a curta corrida de táxi. Respirou fundo e deixou a água morna massagear seu corpo.

Douglas: Pô, Line. Onde você tá?

Com a toalha ainda presa em volta dos seios, Aline abriu calmamente a mochila, tirou outra maçã argentina que trazia da viagem e começou a comê-la enquanto olhava pela janela, como num filme que havia visto há pouco tempo, mas não lembrava bem o nome. Sentiu o vento brincando de secar seu cabelo por um bom tempo. Depois deixou o que sobrou da maçã na mesa e foi verificar o celular. Viu as quatro mensagens de Douglas. Tentou ignorar num primeiro instante, mas se rendeu. Já sem a toalha, foi até o canto da cabana e fechou os olhos, sentido as ásperas chapas de madeira arranharem levemente suas costas. Olhou-se pela câmera frontal do celular e percebeu que estava descabelada. Puxou uma faixa de cabelo do bolso lateral da mala, que estava próxima. Não estava satisfeita. Ainda dava para notar as olheiras. Sendo assim, sacou agora um pequeno kit de maquiagem que trouxera na bagagem e caprichou nos cílios, com a calma que nunca teve antes para essa tarefa. Dessa vez olhou a própria imagem e sorriu. Sentiu orgulho de si mesmo por estar ali, daquele jeito, naquele lugar, àquela hora. Apreciou detalhes de si mesma e bateu uma foto, que usou para responder Douglas, junto com sua nova palavra preferida.

Aline: Descubra!

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