Hoje, venho cá discorrer sobre uma verdadeira jóia (sou como um velho que sempre colocará acento nesta palavra) da música popular brasileira. Não obstante, seu nome também é Jóia e seu criador, um dos maiores cantores e compositores desta braseira de rosas – como diria Sousândrade -, Caetano Veloso. Como devem ter já percebido, carrego certa devoção a esse artista.

Depois da efervescência tropicalista de 1967 a 1969 e também depois de seu exílio em Londres que durou até 1972, Caetano parece que depurou sua música e seu jeito de cantar e tocar. Sua alma começou a estar cada vez mais presente em sua obra e, para mim, os dois álbuns lançados juntos em 1975 sintetizam isso.

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Esgotada, de certa forma, a primeira cornocópia criativa provocada pela volta do exílio e pelo hiato de três anos sem gravar um novo disco (depois de Araçá Azul e Chico e Caetano Juntos e Ao Vivo, ambos lançados 1972), Caetano passou a compor sem qualquer parcimônia nesses anos seguintes. A fartura de novas canções e seleções de outros compositores parecia surgir, primeiramente, um álbum duplo. Mas, por entendimentos e desentendimentos, a ideia de criar dois discos opostos que se complementavam e se desafiavam, fascinava Caetano. O trabalho não seria um álbum duplo, mas sim dois discos de características opostas e complementares, definidos por duas expressões bastante em voga nos anos 70: jóia e qualquer coisa.

Com manifestos específicos e capas tão opostas quanto seus conceitos musicais, Jóia e Qualquer Coisa foram lançados ao mesmo tempo em abril de 1975. Antes mesmo de chegar às lojas, Jóia criou a única polêmica real ligada ao trabalho: a capa original era uma foto da família Veloso repintada pelo próprio Caetano, com os três absolutamente nus. Nem mesmo a opção de incluir pombas que cobririam os sexos foi acatada pela censura e o álbum saiu apenas com as plácidas pombas azuis.

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Fortemente influenciado por um disco de músicas das tribos Xingu, Jóia é quase é uma minissuíte minimalista, investigando as possibilidades de diferentes harmonias, divisões rítmicas ou simplesmente da voz por ela mesma, de pura melodia.

O álbum se abre com Minha Mulher, uma canção que, de tão forte, chega a ser uma oração. Nela, Caetano divide os violões com Gilberto Gil trazendo a sensação de um canto místico, um canto árabe que, carregando a voz limpa de Caetano, é amarrada hermeticamente. É como costumo dizer, essa canção não é uma canção e sim, um sentimento.

 

“Quem vê assim pensa

que você é muito minha filha,

mas na verdade,

você é bem mais minha mãe (…)”

Não bastando a genialidade exacerbada da primeira faixa, Caetano musica Pipoca Moderna – canção épica da Banda de Pífanos de Caruaru, que Gil gravara em 1972 em seu Expresso 2222 – e também uma poesia concretista de Oswald de Andrade sobre o descobrimento do Brasil em Escapulário.

A faixa Jóia é um verdadeiro exemplo de uma composição popular baseada em um pensamento musical não tonal. Contudo, o interesse por esse tipo de construção musical, ao invés da criação mais convencional de uma melodia acompanhada por uma harmonia de acordes, não é, neste momento, um fato novo na obra de Caetano. Em Araçá Azul, ele já havia experimentado deste crivo musical, o qual foi excepcionalmente bem sucedido.

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Ainda sobra espaço e fôlego para belas e calmas canções como Canto do Povo de um lugar, Lua, lua, lua, lua, (também gravada por Gal em Cantar, 1974) a gradativa Gravidade, a versão de Na asa do vento, a assonântica Guá e um cover dos Beatles, Help!

Contudo, Jóia é um disco tão leve e, ao mesmo tempo, sentimentalmente tão denso e forte que os aconselho, caros leitores, a escutá-lo de joelhos e olhos fechados. Se possível, cheirando a sono e sorriso.

 

A CAPA

Trazendo Caetano, sua mulher Dedé e seu filho Moreno completamente nus, apenas pintados por cima da fotografia e com pombas cobrindo o sexo, a capa de Jóia não foi aceita, é claro, pela censura que a considerava um tanto quanto ofensiva. Todos os discos tiveram de ser recolhidos das lojas e Caetano foi obrigado a refazer a capa, deixando apenas as pombas que, outrora cobriam suas “vergonhas”. À época, Caetano teve de se explicar com a Polícia Federal e foi ameaçado de perder a guarda de seu filho.

 

FAIXAS

1 – Minha mulher
(Caetano Veloso)

2 – Guá
(Caetano Veloso, Perinho Albuquerque)

3 – Pelos olhos
(Caetano Veloso)

4 – Asa
(Caetano Veloso)

5 – Lua lua lua lua
(Caetano Veloso)

6 – Canto do povo de um lugar
(Caetano Veloso)

7 – Pipoca moderna
(Caetano Veloso, Sebastião Biano)

8 – Jóia
(Caetano Veloso)

9 – Help
(J. Lennon, P. McCartney)

10 – Gravidade
(Caetano Veloso)

11 – Tudo, tudo, tudo
(Caetano Veloso)

12 – Na asa do vento
(Luiz Vieira, João do Vale)

13 – Escapulário
(Caetano Veloso, Oswald de Andrade)

 

Dedico este texto à minha mulher, Andreza Ballan, que até parece minha filha mas, na verdade, ela é bem mas minha mãe.

 

(E para fechar esse duo de discos transcendentais, o próximo Fino da MPB trará sua outra metade, Qualquer Coisa.)

 

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