Documentário Alive Inside mostra o poder da música na restauração da memória e reconexão de pacientes consigo mesmos.

Foto Reprodução da Internet/Divulgação

Comecei o primeiro parágrafo desse texto várias vezes. Digitava, lia, backspace. E sabia o motivo: propus escrever sobre a relação da memória com a música e não é possível estabelecer distanciamento pessoal quando se trata desse tema. Funcionou quando resolvi falar em primeira pessoa. Já faz tempo que tento entender como pessoas com Alzheimer podem não saber o próprio nome ou como voltar para casa, mas reconhecem canções que as emocionaram décadas atrás. Como alguns doentes são incapazes de pronunciar uma palavra, mas cantarolam melodias que fizeram sucesso quando ainda podiam lembrar?

Por volta de 2013, meu pai, o velho Luizão, aos 63, começou apresentar os primeiros sinais de que algo não ia bem: esquecimentos, confusões para executar tarefas que antes lhe eram simples e perda de noção de espaço/tempo. Foram meses até que exames se aproximaram do diagnóstico: Mal de Alzheimer. Digo aproximaram porque ainda hoje não há exames precisos de diagnóstico da doença. 

 

“Sem música, a vida seria um erro”

Nietzshe

Daí em diante foi ladeira a baixo, meu pai cada vez mais esquecido, dependente e a família fragilizada ao ver aquele homem outrora fonte inesgotável de força, entusiasmo e alegria, agora introspectivo e com sérias dificuldades de comunicação e locomoção. Mas algo nos chamava atenção: bastava uma música começar a rolar, ele abria um grande sorriso, batucava na mesa, assobiava, cantava junto com a desenvoltura que já não tinha para manter uma simples conversa. E ficava feliz. Muito feliz.

Meu irmão, Pablo, tocando Primeira Canção da Estrada, de Sá Rodrix e Guarabyra, para nosso pai.

Poder transformador da música

Certo dia caminhávamos na praia, braços dados, passos curtos, ele mal conseguia completar uma frase. Comecei cantarolar Chico Buarque, Com Açúcar, com Afeto, e ele simplesmente cantou a música inteira. O mesmo acontece quando meu irmão toca no violão Caetano Veloso, Giberto Gil, Raul Seixas, Sá, Rodrix e Guarabyra, Bossa Nova, Beatles, e todos os sons que marcaram momentos felizes. Daí vemos nosso pai se transformar, é como se desse um gole farto de vida!  Emocionante e cientificamente justificável. 

É o que mostrou a experiência do pesquisador norte-americano Dan Cohen, fundador da organização Música e Memória. Como voluntário em casas de repouso dos EUA, Cohen tenta recuperar a memória de pessoas com Alzheimer e outras doenças mentais por meio da música. A empreitada gerou o documentário Alive Inside: A Story Of Music and Memory (Vivo Por Dentro: Uma História de Música e Memória), vencedor do festival Sundance 2014 e disponível no YouTube e Netflix, para nossa alegria. 

Henry faz parte do documentário. Seu jeito triste e cabisbaixo dá lugar a um homem alegre e amante de bailes quando a música começa. “Reconectamos Henry com seu eu”, diz Dan Cohen.

Foto Reprodução da Internet/Divulgação

Alive Inside mostrou, com diversas pessoas, o que testemunhei em casa: olhares perdidos ganhando vitalidade, pacientes reconectando-se consigo mesmos e até dançando. Prepare o lencinho e constate o poder da música. Parece mágica: instantaneamente após ouvirem suas músicas preferidas, pacientes acometidos gravemente por doenças neurodegenerativas lembram de pessoas, acontecimentos e de detalhes de suas vidas. 

Bunker zumbi do cérebro

Dirigido pelo cineasta Michael Rossato-Bennett, Alive Inside conta com entrevistados como o neurologista Oliver Sacks e o músico Bobby McFerrin. Sacks explica que a música é inseparável da emoção. Portanto, é capaz de ativar memórias e sentimentos relacionadas àquele som. Além disso, a música atua nas funções executivas do cérebro. Com isso, além da restauração da memória, atenção e criatividade, estímulos musicais potencializam a reabilitação física e cognitiva de várias síndromes e transtornos do desenvolvimento.

Ainda de acordo com o neurologista:

“A música é capaz de acessar  mais setores do cérebro do que outros estímulos: não somente partes auditivas, mas também visuais e emocionais”.

A pessoa em contato com canções, tem, inicialmente, estimulado os lobos temporais (audição), seguido do lobo occipital (visão do som), do lobo frontal (pensar sobre o som).  Atinge também porções responsáveis pela coordenação. A música se registra nos movimentos e nas emoções e estes são os últimos campos afetados pelo Alzheimer. A mina de ouro fica no lobo temporal, que vai da têmpora à parte de trás da orelha, é o bunker zumbi do cérebro. 

Não é emocionante que a música esteja assentada em nossa mente e em nosso repertório corporal, de tal modo que se um dia você esquecer seu próprio nome, ainda lembrará dos motivos que o levam a se emocionar com uma canção e que seu corpo sentirá vontade de dançar?

Arte por Igor Morski

Musicoterapia

O grande mérito de Alive Inside é comprovar como métodos terapêuticos alternativos podem ser aliados da medicina tradicional no combate a enfermidades, chegando, em alguns casos, a serem mais eficientes que apenas o uso de remédios.⠀O filme colabora com o rompimento com os tradicionais estereótipos do processo terapêutico como processo farmacológico, e demonstra que o remédio para certas enfermidades pode não estar nos livros de medicina, mas no fortalecimento da identidade e da humanidade.

Peço desculpas de antemão pela minha cantoria no vídeo abaixo! Estávamos sentados no Bar da Praia (Boiçucanga) e rolava Bad Boys, no som. Meu pai então falou, da maneira que conseguiu: “Esse som me dá um bem estar danado”… e de repente, ele, que chegou ali com ajuda, levantou e começou dançar. 

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