É fim de tarde e, no encontro das ruas Manoel Dutra com a Santo Antônio, ali aos pés da 9 de julho e da icônica Escola de Samba Vai-Vai, um espaço singelo o bastante para passar despercebido ante os carros que buzinam, mas não tão discreto a ponto de não destoar da paisagem corriqueira se encontra de portas abertas para a rua.

Este é o Rancho Nordestino, um dos mais antigos espaços de cultura nordestina na capital paulista.

IMAGENS | YURI DINALLI

[dropcap size=big]Q[/dropcap]uem caminha pelas ruas do Bixiga, bairro localizado no centro da cidade de São Paulo é, inevitavelmente, bombardeado por influências da cultura italiana. Restaurantes, cantinas, rotisserias e um sem fim de opções da terra da nona encontram-se confundidos com a própria paisagem do bairro. E não é para menos, uma vez que ao final do século 19 a região recebeu volumosa quantidade de imigrantes vindos da Itália para trabalhar na capital da maior cidade do Brasil e, embora constem relatos de que ali tenha sido, ainda no século 18, reduto de negros escravos, fugidos e libertos, e que o lugar abrigou, principalmente a partir dos anos 50 diversos retirantes nordestinos, foi nas letras de Adoniran Barbosa que o lado italiano do bairro se sobressaiu e ganhou fama.

Porém, embora o bairro seja lembrado por este viés, há toda uma cultura que se encontra nos detalhes, no sotaque arrastado, nos temperos e sabores do Bixiga que a gente não vê: o Bixiga do nordeste!

SERTANEJO DO NORTE

Raimundo Nonato, proprietário do Rancho Nordestino

Conciliando a atenção dos poucos fregueses que, àquela hora, experimentavam um misto de almoço e lanche da tarde, o cearense natural do sertão Raimundo Nonato, 67, esbanja boa forma no manuseio dos pratos — da cozinha para o balcão e vice e versa —, copos e garrafas. Apesar dos cabelos completamente prateados, dignos de um senhor da sua idade, sua feição serena e avermelhada passa ares de vitalidade. Ele é o dono do Rancho Nordestino, “um dos primeiros espaços nordestinos de São Paulo, antes mesmo do Andrade”, como ele faz questão de pontuar. Isso porque o Rancho está prestes a completar os seus 40 anos de existência. “Eu cheguei aqui na Bela Vista em 75, trabalhei 9 anos de garçom e vim pra cá.” — apontando o dedo indicador para baixo, em menção ao espaço do restaurante — “Isso aqui era bem diferente: tinha só um barzinho pequenininho lá em cima, um balcão e uma mercearia no pé da parede”.

Conta que durante quatro anos ia até o local, de madrugada, para beber, tomar caldo de mocotó e conversar com os amigos, até o dia em que o antigo dono, à época, decidiu passar o espaço adiante. “Isso mais ou menos em 84, ele resolveu vender e eu resolvi comprar”, conta em tom de brincadeira. Esbanjando boa memória, lembra que assumiu no dia 20 de setembro de 1984 o comando do já conhecido, embora muito menos que hoje, Rancho Nordestino.

RESPEITA JANUÁRIO

De maneira a respeitar a tradição da cultura nordestina, Raimundo conta que manteve a maioria dos pratos que eram servidos antes dele assumir o restaurante, como o caldo de mocotó, as porções de cabrito e as doses de cachaça, mas foi justamente atendendo aos pedidos da clientela que ele fez as mudanças necessárias e incluiu no cardápio o que hoje é servido no local. “A gente foi mudando, mudando… eu fiz o mezanino lá em cima e montei um salão aqui em baixo, que no começo era alugado”. Conta, também, que foi acompanhando as exigências da lei e se adaptando à fiscalização que ele conseguiu regularizar o espaço para operar sem que houvesse problema.

É inevitável, numa visita ao Rancho, você não notar que as paredes da casa traçam uma espécie de linha do tempo, uma vez que estão dependuradas uma variedade de molduras que guardam recortes dos mais diversos veículos de comunicação: A Tribuna, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Carta Capital, Veja, e por aí vai. De forma saudosa, ele lembra que isso tudo começou no ano de 1995, quando o espaço passava por momentos difíceis e teve de recorrer a novas medidas para tentar se reinventar.

 À época, um cliente do bar sugeriu que ele procurasse a ajuda do SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). “Eles [do SEBRAE] vieram até aqui e me orientaram sobre reforma, melhorias e, após realizá-las, eu contratei uma assessoria de imprensa para divulgar isso tudo, também por sugestão do SEBRAE”. Ele explica que a assessoria trabalhou durante três meses divulgando o espaço e, depois disso, lhe disseram que a partir daí as coisas caminhariam por si só.

“De lá pra cá eu não parei mais de sair no jornal, sempre vem jornalista aqui fazer matéria, me entrevistar e tudo o mais”.

Não se abstém de dizer que, ainda que a casa tenha passado por reformas, é muito importante para ele manter as características originais, pois são elas que cativam o seu público. Sempre atento ao que sua clientela solicita, ele lembra, orgulhoso, que tem gente que fica dez anos sem vir ao restaurante e, quando volta, diz que nada mudou, que o sabor dos pratos permanece inalterado. O grande diferencial do lugar está justamente nesta proximidade com o consumidor final.

E é assim no prato e no copo. “A pinga, por exemplo: eu gosto muito da cachaça do Maranhão, mas o pessoal sempre pede pinga mineira, então eu tive que colocar aqui também”, pondera. Com relação à cachaça, assunto de prioridade no Rancho Nordestino, Raimundo diz que é ele quem faz o controle de qualidade, e que não entra nenhum tipo de aguardente que não lhe agrade o paladar.

O famoso Baião de Dois do Rancho Nordestino (arroz, feijão de corda, ovo, queijo coalho, coentro e especiarias).

BAIÃO DE DOIS

O Rancho Nordestino é, sem dúvida, um espaço de respeito às tradições. Raimundo conta que não se usa nenhum tipo de tempero pronto no preparo dos seus pratos. O tempero simples, como ele gosta de dizer, “da roça”, tem como base alho e cebola, só. Onde a simplicidade impera, a metade equivale ao dobro e é assim que as coisas funcionam no Rancho. Da cozinha, os pratos que mais saem, segundo Raimundo, são o tradicional Baião de dois e a “Paçoca”, que nada tem a ver com o doce de amendoim que é vendido por aí. O prato consiste, na verdade, numa porção de carne de sol servida praticamente embebida em farinha.

“De cada dez clientes, nove comem baião de dois ou paçoca… até um pouquinho mais de dez, na verdade”, brinca.

As cadeiras do restaurante são típicas, com acento feito em couro.

E é assim, respeitando as tradições, dando atenção aos reclames da clientela e apostando na simplicidade dos sabores é que o Rancho Nordestino está há quase 40 anos no mesmo cruzamento, 35 deles nas mãos de Raimundo Nonato. No coração do Bixiga, ladeado por cantinas e com elas convivendo em harmonia, este que, para além de um restaurante, é um espaço de afirmação de uma cultura genuinamente brasileira, segue servindo seus pratos simples e originais, sempre regados a boas doses de aguardente e um dedo mais da prosa sertaneja.

O RANCHO NORDESTINO fica localizado na Rua Manoel Dutra, 498, no coração da Bela Vista, em São Paulo. Funciona de quarta a sábado, das 11h às 01h e a entrada é gratuita.

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