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 Conto: Robson Alkmim | Ilustração: Filipe Rocha

Era a última encenação da peça Rei Lear de William Shakespeare no teatro da faculdade. Ao contrário das outras duas apresentações durante a semana, esta tinha atraído muita atenção pelos comentários de que os atores não se deram bem durante os ensaios, mas nas apresentações anteriores tudo aparentemente ocorrera bem, ganhando elogios de vários professores, os únicos que tiveram interesse em assistir aos alunos do primeiro ano do curso de Teatro. Agora, alunos curiosos ocupavam todas as cadeiras na plateia. Alguns até ficaram de pé para acompanhar a peça que todos já ouviram falar e que raros conheciam.

O palco vazio, a cortina abaixada, as luzes acesas em espera, murmúrios vindos da plateia agitavam os atores na coxia. Anna, de braços cruzados, olhos fechados, balançando seu corpo como um pêndulo, vestida com sua roupa vermelha de bobo da corte, parecia meditar, concentrada, dizendo suas falas para si mesma. Seus colegas demonstravam nervosismo: o rei Lear suava; Goneril, Regan e Cordélia, suas filhas, cochichavam umas com as outras retocando suas maquiagens e roupas pesadas; Edgar arrumava a calça apertadíssima, enquanto Edmundo acenava com a cabeça para o diretor que passava posicionando e acalmando o resto do elenco.

Antes da cortina se levantar e a primeira cena do primeiro ato ser iniciada, Anna, voltando de seu estado meditativo, fuzilou com o olhar o colega Lear e, com a cara fechada como se tomasse uma ventania frontal, cravou os olhos no grupinho das filhas do rei, enquanto cerrava seus punhos numa atitude agressiva, rangendo os dentes.

A Curiosidade, este desejo quase indomável da natureza humana, ganha o Olimpo quando se trata da vida dos outros. Assim, a partir do momento em que se espalhou na faculdade que Anna e seu namorado (rei Lear) brigaram por causa de uma atriz do elenco da peça, a mesma ganhou um sabor apimentado que talvez até Shakespeare, o dramaturgo das intrigas, ficaria orgulhoso de inventar tal incidente.

A sineta tocada por uma professora baixinha em frente ao palco, indicava o início do espetáculo. As conversinhas e os pescoços torcidos foram amainando, os celulares desligados, o silêncio crescia e as luzes dos holofotes se posicionaram no centro do palco. A cortina subiu. O cenário de um castelo, montado com placas de madeira e pintados pelos alunos de artes plásticas, parecia bonito de longe, tal como alguns móveis e castiçais que ambientavam a época do decadente rei da Bretanha.

Durante as primeiras cenas, os atores, possivelmente influenciados pelo nervosismo e o tamanho da plateia, mostraram-se absolutamente afetados em seus gestos e falas: as mãos agitaram-se freneticamente retorcendo os pulsos; os braços eram erguidos e sacudidos quase a ponto de haver rasgos nos sovacos; os passos marcados, ora pareciam ser de bailarinos, ora de soldados marchando sobre as tábuas do palco agredidas pelos corpos caudalosos dos alunos que precisavam impressionar professores, amigos e colegas.

Muitos alunos na plateia riam baixinho, sussurravam piadinhas, apontavam com dedos quase escondidos sob o queixo para o palco, mirando algum colega que se pavoneava em cena. A maioria, na verdade, observava atentamente as reações e olhares dos atores envolvidos na intriga que os trouxeram até ali.

No pequeno intervalo entre a terceira e quarta cenas, com as cortinas baixadas, o elenco se preparava para entrada na próxima cena. Anna, ainda bastante introspectiva, observava a movimentação dos colegas que lhe atravessavam a visão, deturpando o que lhe pareceu ser um carinho com a mão esquelética e lisa de uma das atrizes no pescoço e cabelos de Lear, o seu namorado. A cena se deu num piscar, seria Cordélia ou Goneril, tão parecidas? Anna arregalou os olhos e suas duas presas já não estavam mais próximas, mas ela reparou nos lábios de sorriso curto de Monaliza, aquele em que o tesão se encontra no que é proibido e que só o autor pensa que sabe o que sabe, ela comparou aterrorizada. Anna pegou um copo de plástico e encheu de água duma das garrafas sobre a mesa. Bebeu tudo, de uma vez, esmagou o copo e o atirou na lixeira. O diretor chegou perto colocando uma das mãos no ombro de Anna e lhe deu instruções, ela não o ouviu, seus olhos estavam vermelhos, mas ninguém reparou.

A cortina é erguida, a quarta cena começa, Anna (Bobo da corte) espera a deixa para entrar em cena. Rei Lear chama pelo seu Bobo, Anna aparece em sua roupa vermelha, caminhando como um chimpanzé. A plateia silencia, é a hora esperada, o casal é o centro das atenções. Os pescoços se esticam, mexem-se, suspiros tensos de garotas nas primeiras fileiras denotam sua preocupação com tudo que acontece lá em cima, sob os tórridos e brilhantes holofotes.

Mas tanto Anna e seu namorado se comportam com a devida seriedade e incorporam seus personagens com paixão exagerada. Mas o que as pessoas esperavam? Alguma cena de ciúmes entre namorados enquanto a peça fala sobre a loucura de um pai ocasionada pela traição de suas filhas? Qualquer evidência parecia servir como banquete aos inquietos colegas de faculdade que, sem lá grande coisa mais importante a fazer, durante a semana, haviam debatido nas redes sociais sobre vida do casal, considerado o mais bonito do campus.

Na cena, o diálogo é desenvolvido naturalmente, ainda que as vozes dos atores ecoando pelo teatro soam pouco nervosas. Rei Lear faz uma pergunta ao Bobo e este lhe responde:

“Eu gostaria de entender que espécie de parentesco existe entre ti e tuas filhas; elas ameaçam me espancar porque digo a verdade; tu mandas me açoitar porque minto; e algumas vezes apanho por não falar nada; eu queria ser qualquer outra coisa, menos Bobo…”.

Anna não continua sua fala, sua voz some como um rato que entra assustado num buraco ao ver o gato. Ela não se movimenta, seus braços ficam petrificados no ar. Seu namorado, com os olhos esbugalhados e a face vermelha, espera a conclusão das palavras que não saem. A plateia para de respirar. O diretor na coxia, que remexia no roteiro, fica com a boca aberta e o queixo caído. Os outros atores tomados por um gelo glacial nas colunas, não têm qualquer reação. A cena que vinha cheia de movimento se tornava uma fotografia em que é possível perceber que a boa engrenagem, de uma hora para outra, havia pifado.

Anna, naquele minuto, não enxergou mais nada, absorta pela última fala, percebendo que nela continha toda a humilhação pela qual o namorado parecia lhe infligir pelas costas e que tantos rumores havia despertado naquela maldita plateia, fazia-lhe devanear no inferno da realidade. Se aquela colega era mais bonita ou interessante, nada, absolutamente nada poderia dar o direito de meu namorado fazer o que tem feito. Ele me acusa de ser chata às vezes, de ser fútil algumas vezes, de não dar atenção a ele muitas vezes, e de não demonstrar nenhum carinho quase sempre… mas, porra, tenho meus direitos, sou assim, é difícil mudar, é difícil ser a mulher submissa que aceita agradar a ele e qualquer outra pessoa… na verdade, ele me atrapalha quando quero estudar, quando quero trabalhar, quando quero ensaiar e melhorar como atriz, pois é isso que eu quero, que mais quero na vida, merda, merda, ele que vá se masturbar!

Ela sai do seu torpor, joga os braços para baixo, parece cansada, além, esgotada. Todo o teatro volta a respirar, com olhares interrogativos e curiosos e perdidos. Os outros atores se entreolham, o diretor sua como uma cachoeira, tem a camisa de florzinhas ensopada.

Anna, de cabeça baixa, começa a se movimentar. Os da plateia sentindo as mãos formigarem, sacam seus celulares e batem fotos e filmam. Anna se dirige a Lear, dá um grito muito forte que o faz deslizar alguns passos para trás. Ela berra, como um vulcão em erupção, todos os impropérios possíveis na cara de seu namorado, que se protege com as mãos. O Bobo, por fim, levanta o braço como se erguesse um machado e o derruba sobre a face do rei caduco, a vingança do subordinado! Muitos cliques, risadas e gemidos de horror vêm da plateia. O diretor grita para que a cortina seja baixada. Os outros atores entram no palco para socorrer o rei tombado e choroso. Anna, ainda possessa em toda a raiva, rasga parte de seu vestuário, exibindo parte dos seios brancos para delírio da plateia que agora urra, principalmente os homens, que aplaudem. Anna sai de cena como se tivesse acabado de derrubar sozinha um exército, ninguém a toca, mas acompanham sua fuga em prantos.

Ficou-se sabendo depois que Anna esmurrou a adversária errada (Goneril, a loira) antes de correr seminua pelo campus, pois a colega que havia acariciado seu namorado não fora quem ela havia imaginado, tal como a história de Shakespeare, em que o rei expulsa do reino a sua única filha honesta, deixando as outras duas traíras, incólumes. Tarde demais, todos ficaram contra ela, e, além disso, fotos e videos do vergonhoso espetáculo viralizaram pela internet, extrapolando os muros da faculdade, tornando alguns de seus colegas “cineastas” mais populares nas rodinhas de cerveja.

É sabido que Anna se separou do namorado (que agora namora a outra atriz que interpretou Cordélia, a outra loira) após ele lhe confessar a traição, e pior, por más línguas, dizem que ela realmente enlouqueceu, pois saiu da faculdade por não suportar a punição recebida por vários meios, tal como Lear novamente, mas ao invés de rainha maluca, Anna ficou conhecida como a Boba da Corte.

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