Contos Ilustrados: Distraídos

Conto: Gabriel Lima | Ilustração: Filipe Rocha

 

Ângelo se distraiu e só desapertou o botão do filtro depois que a água gelada transbordou a caneca, derramou sobre seu sapado e chegou, quase que instantaneamente, à sua meia fina. Sacudir o pé e dizer alguns palavrões aleatórios seria sua reação comum se naquele momento a sorte não lhe estivesse presenteando com uma das visões mais belas que seus olhos cansados já haviam registrado.

A porta da sala da Sofia estava entreaberta, assim como suas pernas arredondadas e pouco bronzeadas sob o vestido tomara que caia. Um vestido suave, quase pertencente à categoria “curto”, estampado com flores vermelhas que combinavam muito com o cabelo e um pouco menos com os lábios. Um vestido com caimento côncavo, que formava uma ponte de tecido florido entre as coxas – quase uma rede de balanço – e não mostrava nada além de algumas marcas avermelhadas deixadas pela cadeira.

Enquanto isso Sofia digitava, também distraída. As mexidas consecutivas no mouse indicavam o trabalho em alguma planilha, mas esse era o detalhe que menos interessava Ângelo. Para ele, essa oportunidade repentina de voyeurismo não passava de uma compensação muito bem escolhida pelo destino por todas as horas que passara olhando apenas para as pilhas de papéis, e-mails e baias daquele escritório.

Ângelo levou a caneca cheia até a boca antes de procurar algum guardanapo para secar o chão. Nunca havia bebido nada tão propositalmente devagar como aquela água fria, que o obrigava a proteger os dentes sensíveis. Água que ganhou sabor durante os poucos segundos que Sofia demorou para perceber o olhar de Ângelo e como ele tosse alto quando engasga.

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