RGB_SOULART_THE_BLIND_ONEConto: Robson Alkmim | Ilustração: Filipe Rocha

 

Deitada em sua cama, Roberta ouve os pingos da manhã. Uma chuva mole a de hoje, ela pensa. Um pingo sobre a calha do telhado, outro sobre a roseira, agora um sobre o carro do pai. Sempre imaginava as nuvens como um pedaço de algodão, como sua mãe lhe dissera, e as de chuva, algodões encharcados penduradas no céu como roupas no varal.

Seu despertador já tinha tocado e muitos minutos se passado. Acho que hoje será um belo dia, ok. Ela joga o cobertor para o lado da cama e sente frio nos pés ao tocá-los no chão. Com as pontas dos dedos encontra seus chinelos e arrasta-os para si. Calça-os e se levanta. Espreguiça-se cheia de estalos e gemidos e bocejos. Silencia o corpo e repara que não há sons vindo de fora do quarto. Dá meia volta e avança em direção àquela manhã bocejando. Tateia a mesa cheia de livros junto a um computador. Acima, encontra o alumínio frio fazendo-o deslizarshhhh…o ar entra, bem-vindo e úmido. Estende a mão e encontra algumas gotículas da chuva que vai se extinguindo. Sacode os cabelos negros, curtos e rebeldes. Vira-se, e a passos curtos chega à porta, logo encontrando a maçaneta.

Roberta abre a porta e coloca a cabeça para fora, nenhum som. Estranho, ela pensa. Sai do quarto dedilhando a parede do corredor e encontra uma porta, a do banheiro. Lá dentro, ela alivia seu aperto na privada, abre o chuveiro, depois tira seu pijama, toma um banho quente, lava o cabelo com um xampu, enxágua-se, espirra, seca-se numa toalha, veste calça e blusa previamente penduradas num cabide. Seus movimentos são precisos e metódicos. Encara-se no espelho sacudindo a toalha na cabeça e depois usa um secador de cabelos, penteando-se com uma escova. Ao terminar, pendura as toalhas no box.

Ela sai do banheiro apressada e com cuidado desce as escadas escorregando a palma pelo corrimão. Mas que coisa! esqueci a bengala! isso nunca acontece! Roberta já se encontra no meio da sala e decide se sentar no sofá. Mãe? Pai? No seu rosto nenhum resultado. Respira fundo e se levanta. Anda balançando levemente os braços, arrastando os chinelos até a cozinha; chega à mesa, puxa uma cadeira, senta-se. Bate a mão na mesa e Rá, rá, rá! Sua mãe entra cambaleando na casa com a cara opaca; têm nas mãos um vaso com petúnias violetas agitadas conforme os seios da mulher esbarram nelas.

O quê foi Roberta?

Ah, tava onde mãe?

Lá fora cuidando do jardim… me assustei agora com você.

É que esqueci a bengala lá em cima, desci sem, tá vendo, tá orgulhosa?

Ah, tô vendo, mas tome cuidado, né? Sabe que qualquer barulho me deixa tensa, não sei,  você pode… ah, é bom nem pensar.

Hum, e cadê o pai?

Foi buscar seu amigo.

Meu amigo?

Amigo dele, Roberta! Aliás, é melhor você se arrumar, já tomou banho? Eles vão querer aproveitar o dia. Seu pai tem cada ideia…

Já tomei… e que ideia?

Nada, nada.

Você me parece mais preocupada do que o normal, seu olho direito tá tremendo.

Ah, nada, nada, você anda “enxergando” demais, né mocinha?

Enquanto a mãe arruma a mesa colocando sobre ela: um pote de margarina, pãozinho, queijo fresco, uma caneca fumegante de café e o vaso com a petúnia são e salvo. Roberta pensa no que seu pai havia planejado e no que tanto sua mãe parecia lhe esconder.

Fotógrafo profissional e professor de fotografia numa escola de artes, ela se acostumou que ele tirasse fotos dela desde pequena. No dia anterior, ele contou à filha que um de seus alunos precisava de uma modelo para um concurso fotográfico e não sabia onde encontrar uma disponível para uma sessão de fotos; sugeriu Roberta ao rapaz. Ela não argumentou nada ao pai que, meia hora depois, chega em casa com seu aluno.

Ela já está arrumada e sentada no sofá; usa um vestido florido vermelho, braços e coxas nus exibem uma pele delicada. Calça um tênis branco que sua mãe havia lhe presenteado no último aniversário, mas que apertava um pouco os calcanhares e os machucava; nunca reclamou do presente, pois sua mãe era sensível a erros. O rapaz cumprimenta a mãe de Roberta cheio de sorrisos tímidos e vê a moça sentada no sofá com os dois joelhos juntos e as mãos pousadas sobre a saia.

Roberta, este é Danilo. Apresentou o pai dando um empurrãozinho no aluno. Olá!

Olá…

Ele ficou com a mão estendida esperando a mão da moça. Sobrou-lhe o ar girando entre seus dedos. Danilo logo se afastou meio corcunda. Reparou nos olhos de Roberta e se virou para seu professor, que assentiu com a cabeça, confirmando a cegueira da filha.

Você é alto. Disse Roberta.

Ah, sim, acho que sim… disse o rapaz, constrangido e com a voz baixa, rá rá…

Bom, já que a chuva parou, vou levá-los ao Ibirapuera, o sol vai sair. Disse o pai.

Roberta pega sua bengala. Seu pai a conduz até o carro. Danilo fica de cumprimentos com a mãe da moça e entra no carro ouvindo acréscimos de cuidados da mulher; ele se senta no banco de trás abraçado à sua mochila, permanecendo mudo, observando Roberta no retrovisor da porta, enquanto pai e filha falam sobre coisas corriqueiras até chegarem ao parque.

 

——

Meu pai nos disse que voltaria mais tarde para nos buscar após nos deixar no portão cinco do Ibirapuera. Sinceramente, achei que ele ficaria. Eu estava tensa, meu pai sempre havia sido tão protetor, e ali me senti desamparada com um desconhecido que ia me fotografar! Não sou antissocial, mas tenho aversão ao toque. Danilo, coitado, respirou fundo (eu o ouvi) e segurou meu cotovelo como se sua mão fosse uma pinça. Não tive tempo para me irritar, meu corpo deve ter se afastado a um metro pra esquerda do Danilo automaticamente. Eu tocava o chão irregular com a bengala, da grama para o asfalto. Quis chorar. Como a gente se sente ridícula às vezes. O vento batia forte no meu corpo, tive que proteger o vestido. O cheiro doce de grama, agora percebia, penetrou na minha consciência e me trouxe algum alívio. Ouvia vozes distantes: crianças brincando. E eu me encontrava sob o sol, sem saber o que Danilo fazia. E alguém entre nós teve que falar.

Desculpe, sou uma boba.

Tudo bem.

Olha, não é nada contra você.

Tudo bem.

Só consigo que me conduzam quando há alguma intimidade.

E como você gostaria que eu fizesse?

Certa vez um cara me fez passar pela mesma cena, mas ao invés da pergunta, ele me xingou e foi embora. Eu devia ter uns quinze anos. Nunca mais confiei em ninguém que não fosse conhecido. Assim sendo, a pergunta de Danilo me pegou de surpresa aos vinte anos e disse a ele que poderia ir me dizendo sobre as direções que eu deveria seguir, tomando cuidado com meu rosto e com as canelas já meio roxinhas de pancadas passadas. Ele riu e começamos a brincar seriamente. Durante uns quinze minutos andei como alguém que enxergava. E a cada passo recebia instruções de Danilo, que se mostrava atencioso e pensei como ele incorporava a minha mãe naqueles instantes, mas sem histeria.

Cuidado, agora, vem, olha a calçada.

Olha?

Ah, desculpe…

Hahaha, tudo bem, eu enxergo com o corpo todo.

E o que mais te direciona?

Os sons, mas não é fácil, principalmente em ambientes barulhentos, quando tudo se mistura. Uma vez fui numa festa e não sabia a direção das coisas acontecendo, a música alta, o povo gritando, e…

Pra direita!

E aí tive vontade de chorar.

Como agora há pouco?

Ah, você percebeu?

A expressão de uma pessoa logo na sequência de um acontecimento marcante não mente.

Marcante, eu devo ter feito uma cara terrível de boba, vai ter pesadelos comigo.

Ele não me respondeu, mas tive a impressão de que olhava para mim, até vir uma resposta;  Danilo abriu a boca para dizer que estávamos num campo aberto, distante das árvores, pois apesar de bonito, o Ibirapuera não era muito fotogênico. O sol ficava mais quente a cada minuto, após alguns cliques em sua máquina fotográfica, onde pude identificar pelo som, que era a do meu pai, fomos para a sombra de uma árvore frondosa, segundo ele, e me sentei sobre um pano que Danilo havia levado. Não queria confessar, mas tais atitudes me deixaram com o rosto quente. Durante longos minutos foi silêncio entre nós. Eu ficava ouvindo os passos dele andando ao meu redor e tirando fotos. Os pássaros cantavam, algumas vezes ouvia suas asas batendo, sentia inveja deles, mais do que pelas pessoas que enxergavam. Será que existem pássaros cegos?

Não sei te responder isso, mas, e você, quando ficou…

O quê?

É de nascença?

Ah, não. Não nasci tooootalmente cega. Até os 6 anos enxergava cores e luzes, sabia quando tava escuro e claro. Fiz operação, nada adiantou. Vivo na escuridão desde a infância.

Me lembrei de um filme.

Qual?

Quando só o coração vê.

E?

É sobre uma moça bonita e cega que começa a ter um relacionamento com um rapaz negro e…

Ah, pode parar, não me conte mais, sou cinéfila e posso te bater, vou pedir para o meu pai alugar. E você é negro?

Não, não.

Bom, acho que não me importaria.

E você já se apaixonou?

Quando um cara pergunta se você já se apaixonou, pode suspeitar algum interesse, conselho de amigas próximas! Respondi a ele que não, ou talvez não. Eu o senti se aproximar e se sentar ao meu lado, tinha um cheiro de perfume agradável. Sua voz parecia ter perdido a timidez, era mais nítida e firme. Certa vez me apaixonei sim, pela voz de um professor na faculdade, muito educado e novinho, e tinha que ser por alguém que ficava semanalmente à minha frente por uma ou duas horas falando sem parar, né?; minhas amigas diziam que ele era bonito. Minha desilusão foi quando eu ouvi que ele saía com uma colega de classe que me zoava e eu a odiava profundamente. Traição! Quem não pode sonhar com a imagem, sonha com o som do outro, ou o toque. Tal toque eu senti de Danilo, não de sua pele, mas de sua camiseta que roçava em meu braço, e desta vez deixei.

Conversamos um bom tempo sobre nossas vidas; ele trabalhava numa biblioteca municipal e queria ser professor de História, vejam só. Eu estudava, fazia Ciências Políticas, vai vendo! Mãe doente pra lá, mãe maluca pra cá. Ódio ao pai que lhe machucava, amor ao pai me consumia. Gostava de azul: os dois. Melancia: os dois. Comida japonesa: só ele. Eu me sentia tão quente quanto o sol.

Senti sua pele desta vez. Ele havia definitivamente entrado em minha zona de segurança. Tive vontade de chorar, mas passou rápido, não poderia mais agir infantilmente. Deitei minha cabeça sobre o seu braço e ele me abraçou e eu o abracei e ele me beijou e eu o beijei.

Descobri, meses depois, numa conversa entre minha mãe e Danilo na cozinha (e eu de butuca na sala), que meu pai planejara tudo aquilo. Um cupido, o safado, que vira no Danilo um cara legal e responsável para mim. No parque, ele só veio aparecer muitas horas depois, quase no final do dia. Não insinuou nada. No tom de sua voz, enquanto voltávamos para casa, senti uma leveza que até hoje ouço no coração. Ficou óbvio para mim que ele sabia que seu plano havia dado certo, porque eu vim chorando até chegar em casa e com uma cara de bobalegre.

Quer receber nosso conteúdo?
[popup_anything id="11217"]