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 Foto: Andre Vicentini | Texto: Robson Alkmim

Vinte anos separaram Helena do seu local de origem. A vila no litoral já se transformara numa cidade, pequena é verdade, mas para ela ainda conservava alguns mesmos lugares como em sua lembrança, jamais abandonados. As ruas de paralelepípedo, que avançavam em direção ao mar ou em direção à estrada, continuavam irregulares como uma procissão de tartarugas. As casas, em maior número que em sua época, estampavam o colorido em suas fachadas, onde cada morador fazia questão de personalizar sua moradia com um amarelo ou verde ou azul, e até mesmo as brancas, tão sóbrias, mantiveram seu aspecto úmido e acolhedor que só as casinhas de litoral possuem. Os coqueiros e a mata circundante, que realizavam a proteção daquele pequeno paraíso, pareceram à Helena que haviam diminuído de quantidade. Ela pensou ser um sinal do progresso, mas que progresso poderia haver num lugar que vive basicamente da pesca? Não pensou mais sobre o assunto.

Após deixar sua mala no único hotel da cidade, onde notara que o dono não era mais o mesmo, Helena pensou em como era tarde e como poderia ter chegado mais cedo ou no dia anterior. Para ela a estadia não seria longa, não havia necessidade, não sabia o que esperar.

O sol, que a recepcionou na chegada, fora coberto por grossas nuvens, talvez chova, ela pensou. As gotas invisíveis de umidade as quais ela conhecia o recado, fizeram-na se apressar em direção à praia.

Helena não queria encontrar algum conhecido que lhe pedisse explicações sobre o passado e como ela vivia agora. Não queria lidar com a temporalidade com esquivas e desculpas. Ela tinha um objetivo que, de certa forma, lhe causava opressão ao coração que palpitava mais rápido a cada passo de suas sandálias.

Naquele momento, sua cidade materna fazia-lhe esquecer o trabalho como gerente de uma loja de departamentos na capital. O estresse da vida urbana dissipava-se conforme as lembranças do passado vinham-lhe à mente. Estava ali para enfrentar suas dores e encarar a face de quem a decepcionou.

Helena recebera uma carta que vinha remetida daquele lugar familiar. Estranhou a carta, já que a vida moderna havia retirado quase por completo tal prazer. Mas ela ao ver o remetente, não pode dizer que a felicidade lhe entrara pela caixa do correio. O nome de uma mulher com a designação esquecida pelo tempo, reavivou-lhe as agruras que passara. Automaticamente se lembrou da mãe. A mãe morta. O funeral. Os parentes. O pai, principalmente este, que tempos depois lhe apresentou uma namorada, a mesma mulher que remetia a carta, escrita em letras de forma e em papel brochura arrancado de algum caderno, que Helena segurava em suas mãos, trêmulas de esquisita emoção.

A carta dizia que seu pai estava muito velho e que precisaria ver a filha novamente. Não pareceu a Helena que o conteúdo da carta fosse uma súplica, mas talvez uma sugestão de algum ato de reconciliação. Não havia palavras de desculpa, muito menos de explicações inúteis para aquele hiato de anos. Era uma intimação, ela concluiu, bem aos modos de seu pai, mesmo a letra não sendo dele. Durante vários dias ela releu a carta para se acostumar a uma ideia que ficava mais clara: a mulher de seu pai que a chamava.

Helena era filha única, a ligação direta que sobrara na vida de seu pai, já que os irmãos dele haviam morrido, e os outros parentes sabe-se lá onde se encontravam, provavelmente indiferentes ao velho do mar. Somente Helena escrevia para a casa do pai para avisar sobre alguma mudança de endereço, ele nunca a respondia, e ela imaginou que talvez a mulher jamais tenha mostrado carta alguma para o velho.

Sua cabeça girou, estudando todos os pormenores desse possível reencontro. Em imaginação, revisitou sua vida distante com afinco e melancolia. Tinha mais saudades da mãe por estar morta, mas as passagens em que seu pai aparecia, principalmente na infância de Heleninha, como ele a costumava a chamar, revigoraram alguns sorrisos tímidos de filha que tinha todo o carinho e atenção daquele homem chamuscado pelo sol, que cheirava a mar e peixe, e que nunca vinha para casa sem um peixinho de presente para a menina, mesmo nos dias em que nada ocorria na pesca, ele passava no mercado e comprava um peixe para a família comer.

Helena sumiu de sua cidade quando o pai disse que se casaria de novo. Ela, adolescente, não aprovava a possível madrasta, causando na mulher múltiplas humilhações, como falar mal dela pela cidade e na escola. A cada oportunidade Helena se empreitava na destruição da mulher. Mas, seu pai não cedeu àquele terrorismo e marcou a data do casório. Helena, furiosa, decidiu ir para a capital se virar como podia, mesmo que passasse fome, não seria pior do que morar na mesma casa de uma intrusa e de um traidor.

Com as sandálias na mão e os pés na água do mar que se arremetia pela costa, Helena pensou que também se arriscava naquele instante. Se chegou até ali, não recuaria. Durante os longos anos ela cresceu e aprendeu sozinha a não deixar para depois as decisões tomadas. Era um dia absurdo, admitia, enquanto o vento se fortalecia e as nuvens cinzas se espelhavam naquele mar largo e agressivo. Seu pai logo chegaria, era final de tarde, e ela sabia que ele viria antes da chuva cair, e que ele, acompanhado por algum ajudante bem mais novo e robusto, como ele era no passado, teria um rosto transformado e envelhecido, que provavelmente carregaria os anos de sofrimento que só os trabalhadores braçais têm, e que exibem com orgulho por terem sido úteis na vida.

Por uma fagulha despertada pelo riscar do fósforo da memória, lembrou-se de que naquela época ela tinha um namorado. O rapaz ajudava seu pai, era de confiança, bonito e contador de histórias de pescador. Mas ele ficara para trás também, porque, mesmo apaixonado por Helena, teve medo de ir para a capital sem dinheiro ou perspectiva. Ela o deixou sem receios e com o coração dilacerado, chorando nos caminhões que ela pegou carona até o seu destino. E, nesses anos, teve vários namorados. Numa oportunidade quase se casou, mas não quer viver grudada a algum homem o resto da vida, isso não é liberdade, ela sempre concluiu.

Helena viu um pontinho no horizonte do mar. Ele crescia aos poucos, ia tomando uma forma conhecida. Ela ainda era capaz de discernir entre o barco do pai e os outros barcos de pescadores vizinhos. Seu coração explodiu. Ela se sentiu novamente uma menininha que por tantas vezes esperava o pai à beira da praia. O barco fazia o mesmo trajeto de outrora e era seguido pela chuva que caía em sua traseira. Seu pai conhecia a natureza como poucos e jamais teve coragem de confrontá-la. Helena recuou e caminhou até a pedra que servia de referência para o velho na praia. Sentou-se nela e observou o barco, que já vinha sonoro com o barulhinho do motor, apressado e ao mesmo tempo tão mar quanto as ondas.

Ela viu o pai escorado na proa. Sua imagem distante não parecia ter se modificado, mas sabia que aquilo era uma ilusão, sempre fora um momento mágico avistar o velho barco daquele homem como promessa de boas novas.

Ela sabia que ele via sua filha. Ela sabia que sobre o mar suas conexões se rearranjavam. E ela sabia que não haveria palavras, seriam todas inúteis, pois aquela foi a última vez que seu pai pescara.

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