Para um caipira, simplicidade e humildade não são coisas que se possam escolher. São características que devemos ter e pronto. São princípios. Assim, incomoda-me pensar que, por morar na roça, muitos pensem que a vida seja mais fácil, porque tudo seja perfeito: um ambiente idílico, uma paz, um silêncio…

Isso não é verdade. Primeiro porque nossa verdadeira casa é a que carregamos conosco. “O sertão é dentro da gente”, já nos ensinou o Rosa. Assim, somos todos suscetíveis aos desequilíbrios. O verdadeiro homem da roça é inteligente demais para crer alguém possa ser melhor que o outro. Segundo porque um caipira não está livre de ter de se prostituir ideologicamente ao trabalhar, por exemplo. E esse processo, o de se vender, faz com que ele tenha de se ausentar de si mesmo, tornando-o vulnerável à investida das energias ruins, das assombrações, da depressão….

Tinha acordado às três e meia para poder chegar às sete no trabalho, mas, pelo jeito, se atrasaria mais uma vez. Aquilo era insuportável! De onde surgiam tantos carros? Como era possível? Madrugada ainda e toda aquela gente? No rádio, dizia-se que era “só” o excesso de carros! Ainda escuro na estrada, você parece sozinho, o pensamento quase se concluindo: “O que você está fazendo com sua vida?…” São tantas contas, tantos compromissos, “o dinheiro não vai dar, neste mês”… “os juros do cheque especial, não!” (Outro dia até deu na televisão, a pessoa perdeu tudo!…) “Que bom que você tem um trabalho!” “Agradeça! Agradeça! Agradeça!…”

Fotografia por Mek

Aí é um instante e o trânsito para sem poder. Aqueles indivíduos nos seus carros, tão mal protegidos de si, envergonhados, constrangidos, catatônicos… Os cadáveres são tão diferentes, mas os mortos-vivos são tão iguais! Roendo as unhas e a alma. Olhando-se uns para os outros, com uma curiosidade patológica para dentro deles, como que buscando a se reconhecerem. Há uma súplica inequívoca por trás dos vidros: “onde estaremos todos nós?”….

Lá fora, o Sol ou a Chuva consumindo tudo; aqui dentro, as mensagens que os celulares não saberão dizer.

– Vou correr tanto, mas não vai dar tempo. Não vai! Não vai!

Do meu lado, alguém com uma alegria inaceitável. Como pode, rir-se desse jeito tão cedo? Nada justifica. Ninguém é tão feliz. Ninguém está tão bem. Não pode estar. Não deve! Não é justo saber esquecer que nossa vida é um quase: quase feliz, quase tranquilo, quase leve… Viver é quase morrer.

E esse trânsito que não flui!… Minha vida parada de novo, meus negócios, meus… minhas… “coisas”, entende? A vida da gente não pode parar assim! A gente começa a se lembrar de cada coisa!  E começa a se esquecer… O que eu tenho de fazer mesmo hoje? Ah, é… vou fazer isso e isso e assim. Eu já vou planejando tudo. Éh, isso mesmo. Não perco tempo, claro…

Alguém deve ter morrido aí na frente. Sempre morre. Um por dia, parece. Essa ambulância… passando, levando. Vai-se indo, indo, indo… Meus olhos vão acompanhando e pensando…  Um dó, uma compaixão solitária, quase invejosa. Mas me comporto (a gente tem que viver!)! As motos vão atrás. Daqui a pouco também  sou eu que vou.

Éh,… Eu vou também!…

Enquanto não, porém, minha raiva vai consumindo tudo no fogo mais lento que pode haver. Nada a dizer. A ninguém! Vontade? Nem de ver… Queria parar, só parar: de pensar, de falar comigo mesmo. Adivinhando tantos diálogos que jamais existirão – porque eu não quero!… Fique bem claro. Eu não quero! Eu tenho esse controle! Tá entendendo? Tá ouvindo?… (Por que a gente não acredita no que diz, às vezes? Mesmo que grite sozinho, dentro de um carro… Talvez por isso: ninguém que grita deve ser levado muito a sério.)

Noutro dia me peguei invejando aquelas pessoas na sala de recuperação do hospital: o soro lento caindo gota a gota, o abatimento, a debilidade, a indolência, a letargia. Sem energia para brigar, nem para entender, nem para julgar… aquele aninhamento na poltrona verde-água, um quase abraço espiritual, uma quase voz maternal dizendo baixinho… “ – Pronto, pronto… vai passar, viu? Vai passar… chi.. chiu…”

Uma sensação de  que eu devia chorar para passar aquela dor no peito – bem no meio do peito! – para aquele afogamento passar. Aquele congestionamento insano dentro e fora… simplesmente passar.

Mas já está indo agora, tudo indo… trânsito fluindo. Todos indo. Para o trabalho. Para qualquer lugar. Para qualquer lugar… longe, muito longe de si mesmos.

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