Já era fim de expediente. Sexta-feira, quase ninguém no escritório. Demorou—se um pouco mais no computador, adiantou o que pôde para a próxima semana, aproveitando que a esposa, naquele dia, não voltaria com ele para casa.

Quando entrou no banheiro, viu-se sozinho como imaginava. Além dele, só o porteiro, pensou. Concentrado no lavar as mãos, só quando levantou a cabeça é que se deu conta da companhia.

– Oi.

Era o Alessandro. O cara era repugnante. Um desses bolsominnions de hoje: preconceituoso, discriminatório e, como tantos, um idiota cheio de dignidade, ao ir  esparramando imbecilidades por onde passasse.

Nem falou ao responder ao cumprimento, que julgou aquele um ser humano abjeto demais para merecer tamanha deferência.

– Posso falar uma coisa com você, Vítor?

Ora, ninguém diz coisas agradáveis depois de uma introdução dessas, pensou. É claro que o pulha viria com alguma excrescência. Por pensar que o banheiro fosse mesmo o melhor lugar para se tratar dos temas que o colega aventasse, assentiu, porém, não sem custo.

– Pois não.

-…

Seguiu-se, então, um silêncio espalhafatoso demais. Longo, longo. Gestos e expressões inquiridoras não faziam nada além de pressionar mais e mais aquele sujeitinho pequeno, ainda menor que o próprio Vítor que não passava de 1,67m.

– E aí?…

– Não me apressa, caralho! …

– Como uma reprovação que condenava muito mais a dificuldade no dizer do que o próprio palavrão, Vítor foi deixando o ambiente, quando o colega abaixava a cabeça, como que desistindo. Foi no momento em tocou na maçaneta da porta que ouviu:

– EU TENHO INVEJA DE VOCÊ!

Não, ele não tinha ouvido direito. Foi, então, voltando devagar até ao homenzinho que, naquele exato instante, mostrava-se notadamente aliviado, como quem expurga um ser quase estranho a si.

– O que que você disse?

Ao que ouviu com uma fluência adquirida e robusta, então. Torrencialmente, como se não quisesse, nem conseguisse mais se conter foi despejando.

– Inveja, eu tenho inveja de você, entendeu? Tenho inveja do jeito que você é, da sua elegância, da sua classe, sua discrição…

– Mas…

– … todo ético, todo racional, sempre dizendo umas coisas inteligentes. Tenho inveja do jeito que você se posiciona nas reuniões, da maneira como você é amado pelas pessoas, do carinho que todo mundo demonstra por você, dessa autoridade toda com que você… vive, sim, porque parece que ninguém tá certo quando você fala, só você tá certo, né? O doutor “sabereta” falou, então deve estar certo, porque ele não erra …

– Mas eu nunca disse que tô sempre certo e…

– Então, pois é, não disse mesmo. Nunca disse, mas não precisa, porque quando você abre essa sua boca, parece que você tem parte com o capeta, porque todo mundo fica quietinho, ninguém mais tem razão, você faz parecer que todo mundo é idiota perto de você, sim, porque você não se contenta em só ler a porra dos livros todos, você tem que citar, tem que falar que leu, já notou?… Até o chefe,… sempre concorda com você. Noutro dia, lembra? Você discordou do cara na frente de todo mundo e ele, o que fez? Te deu razão, claro. Concordou com você! Se fosse eu, eu despedia você, na frente de geral!… hum… Mas, não. É mais fácil ele despedir eu!

– Bom, mas também… você um puxa-saco. Um anacrônico…

Foi quando aquele individuozinho se sentiu possuído e partiu para cima do Vítor decidido a matar. Como um aríete, arremeteu sobre o maior com uma força que jogou o cara contra o espelho que se quebrou.

No chão, os dois. O estômago avariado em um, a cabeça latejante noutro. A zonzeira de ambos e a tentativa de se recompor preencheu a lacuna de tempo naquele mictório. Foram uns minutos até recomeçarem.

– Tá, eu sou puxa-saco mesmo. Então o chefe tinha que gostar mais de mim, não de você! Disse berrando esse final.

– Só se ele fosse burro. Todo mundo sabe que um puxa-saco é um sobrevivente desesperado, sem dignidade. Um cara que não se garante e que, justamente por isso, pode ser dispensado a qualquer momento.

– É.. pensando assim… Olha aí, você de novo, tá vendo o que você faz? Sempre tem que dizer uma coisa que faz sentido, sempre tem razão. Eu tô aqui me humilhando, tentando levar um papo legal, na boa…

Vítor só olhou bem para o interlocutor. E depois rapidamente para os dois no chão…

– “Na boa?”…

– Ah, eu fiquei nervoso. VOCÊ me deixou nervoso, perdi a cabeça. Lembrou-se da dor, quando disse a palavra.

Seguiram-se, então, mais um tempo de silêncio.

– E… que porra é essa?

– Oi?…

– Isso aí que você falou?

– Mas eu não falei nada.

– Ai, caralho, falou, falou, quando você me chamou de puxa-saco… num sei o quê crônico, uma merda crônico… que porra é essa?

– Ah,… anacrônico?

– É, que que é isso?

– Uma pessoa como você, retrógrada, que vai contra o tempo…

– Ah, é isso… aliviado.

– É.

– Hum… (…Mais pausa, um certo constrangimento até que vem mais uma vez como que numa entrevista para um emprego…) Vem cá, me diz, como é que você faz isso?

– Isso o quê? Olha esse papo já deu, né?… e foi se levantando, gesto que levou o pequeno também a ir-se recompondo.

– Não, só me diz isso, como que você faz? Por que que todo mundo te ouve e não eu? Você não fica falando de futebol, não fala das gostosa da empresa, aliás, você é bem estranho, porque até defende viado, mas é casado com um mulherão, o que eu não entendo!… E ainda anda com essa roupinha de veio e, como se não bastasse tudo isso, é “petista” (ia dizer comunista para ofender mais, mas não se lembrou da palavra, ainda que um termo e outro lhe fossem abstratos) num lugar onde todo mundo detesta esses filadaputa e consegue ser respeitado!… pô, pelamordedeus! tem que ter um segredo…

– Olha, não tem segredo nenhum, eu não acho nada disso e se você quer saber, a vida não é tão fácil pra mim, como você tá imaginando, tá? Disse isso, se arrumando e pronto para ir embora.

– Então,… mas não é isso o que parece, tá?… E também foi saindo

No caminho, entretanto, ainda teve tempo para uma última pergunta:

– Vem cá, e… você acha…. que a gente podia ser amigo?

O outro parou pra pensar.

– Não sei…. Pensa bem, amigo frequenta a casa um do outro, às vezes saem na mesma foto, conversam sobre os mesmos assuntos…

– Nem sempre!

– É, nem sempre, mas de vez em quando. Além disso, um tolera as diferenças do outro, aceita… sei lá, não sei. Você acha que a gente podia?

– É, não sei… verdade. Você tem razão… Putz, você tem razão até quando não sabe uma coisa. Puta, cara, você é insuportável mesmo!…

Ainda riam, mas fecharam a cara quando cruzaram com o porteiro. Pela primeira vez pensaram a mesma coisa: o cara vai achar que a gente é viado!… O senhorzinho da portaria deu mesmo um risinho de Mona Lisa. Mas foram dias melhores os que se seguiram…

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