Dia 28 de fevereiro de 2017, terça de Carnaval, passei por ali na Praça Roosevelt, centro de São Paulo, onde a Augusta desemboca ladeira abaixo, na tal de Baixo Augusta, e dá entrada para à pequena rua Guimarães Rosa. A praça e as ruas do entorno estavam lotadas, pois ali vem parar o povo que esteve zanzando de dia nos bloquinhos da cidade, pois é Carnaval. Às onze a música já estava proibida. Proibesse-se, sim, a música em São Paulo, porque há leis que protegem o morador local, o “cidadão de bem” da turba desarmada, ou melhor, armada de purpurina e lantejola.

A marginália vive nas paragens da Roosevelt. E nem precisa ser Carnaval, figuras estranhas circulavam por ali: mulher diaba com peitos de fora, pretos altíssimos com cílios postiços, meninos que no fundo são meninas. Ursos com botinhas rosas, rachas sapas, boyzinhos querendo as minas que dizem sim e vão com quem querem, skatistas, gatinhos e gatinhas adolescentes, vendedores de pizza por inacreditáveis 15 reais, camelôs lucrando com latinhas de três por dez. Ruivas lees, pretos do Congo, turbantes de Benguela. Tudo meio Caetano Veloso antes de Paula Lavigne. Uma alegria incomum. Ninguém se estranha.

Aqui, canta-se um onipresente Legião Urbana no desafino de um violão; ali, no pandeirinho, rola o Lamartine Babo. Carmem Miranda circula reencarnada numa drag de quatro metros de altura. Uma algaravia de vozes. Muita gente se pega sem nunca ter se visto. Há gente entorpecida de marijuana. Dozes cavalares de catuaba. Ainda assim, nenhuma briga, nenhum outro crime que não seja este de surrupiar celulares e carteiras dos desatentos de plantão. É pouco para uma São Paulo que não para de matar hordas inteiras de adolescentes nas periferias. Uma São Paulo que não dorme, que é pesadelo, mas pode ser sonho. Este de olhos luminosos de glitter, atentos, São Paulo exige sempre olhos abertos. Mas na Roosevelt, terça, tudo explode purpurinado na rara alegria que esta cidade parece conceder aos seus cidadãos. Alegria comumente sequestrada em portarias seladas, circuito interno, apartamentos à prova de som.

Mas a mesma São Paulo — com suas praças de escassas árvores, — esta cidade, que não dorme, quer dormir. O prefeito eleito manda que tudo pare antes da meia-noite. A autoridade que é lei e que quer fazer de cinza a vontade de todos que não o elegeram. São Paulo é pura esquizofrenia. Ligaram reclamando do trombone das marchinhas, do pandeiro do samba e do funk que sai do autofalante de um renault nesta terça-feira de Carnaval.

A polícia atendeu.

Atendeu do jeito da polícia paulistana atende. Ela não desfila, ela marcha. Seu Carnaval é marcial. Sem anúncio, sem aviso prévio, já chega no folguedo. Seu lança-perfume é puro spray de pimenta que cega a turba. Seus rojões são bombas impiedosas. Lançaram dez, dez, dez. Não apenas para dispersar. Lançaram na porta dos estabelecimentos privados também. A polícia de São Paulo gosta de botar o terror, quando chegam, não chegam para dar redado, chegam para apavorar. Aliás, seu recado é uma comissão de frente, cinco viaturas com luzes histéricas, cantando pneus, com policiais empunhando armas, agitando e ameaçando o público que pacificamente se beijava e se divertia ao som de uma música que inventavam nas ruas por que caixas de som potentes são proibidas. O povo saiu na correria, caindo por cima uns dos outros e se ferindo. Imagino cidadãos nas janelas rindo.

Eu estava ali. Os que não fugiram se abrigaram em cafés, teatros, bares locais que desceram a porta. Enfurnados. A polícia — e não os bandidos — são os agentes do terror em São Paulo. São demandados pela autoridade, tem o aval dos gestores públicos, o que são e os que não se dizem políticos. Os vendedores saíram na correria com isopores e carreolas. Fog de gás pimenta. Olhos ardendo. Uns jogaram garrafas, revoltados, contra esta polícia que os odeia. Pessoas nas janelas dos prédios, excitadíssimas. Carros em pânico. Ao som de sirenes, gritos de ordem dos policiais entremeado de palavrões. Mais garrafas voam. Muito estilhaço de vidro no chão. Não pisemos em ovos, melhor procurar abrigo, correr dali. A festa acabou. A família paulista pode voltar a se entorpecer com o noticiário anódino noturno, com sua tevê a cabo paga. É a violência tipica de São Paulo. Feroz. Autoritária. Truculenta. Cinza. Puro ódio paulistano.

A Praça Roosevelt era há dez anos um ponto de prostituição, consumo de drogas, assaltos e violência de todo tipo. Todos evitavam o local, mesmo de carro, à noite, impossível.

Um grupo teatral Os Parlapatões se instalou ali,depois Os Satyros, o que atraiu outro público, artistas, escritores e intelectuais. Abriram Livrarias, bares no entorno, outros grupos teatrais vieram, uma Escola de formação teatral se fez ali. Isto obrigou a mais policiamento.

Ao se tornar um ponto de encontro de referência na noite paulistana, “obrigou” uma reforma real na praça, com expansão dos espaços, instalação de restaurante, bares, posto policial. O entorno voltou a se valorizar. O mercado imobiliário bombou.

Agora, “os cidadãos de bem” querem tirar os “vagabundos” que são o público costumeiro do espaço, pois “as famílias de bem” que/ou não moravam ali, ou sofriam constantes assaltos e estavam exiladas/confinadas, não toleram aqueles que foram responsáveis por “revitalizar” o buraco degradado que era a Praça Roosevelt.

Enquanto isso, nas redes sociais, os imbecis aplaudem o uso da violência e falam dos famosos direitos de “gente de bem”, acusando de baderneiros o público habitual, e defendendo os tais moradores/vítimas do bairro.

Quem faz estas postagens em “defesa da Roosevelt”, nunca esteve na Roosevelt, provavelmente moram em casas gradeadas, com câmera de segurança e vivem aquela vidinha vazia com medo de sair às ruas. São odiadores de ciclovias e pistas de skate, muitos deles batedores de panelas, telespectadores da Globo e fãs do Datena. Eleitores do bandido Alckmin e apoiadores do Golpe contra presidente eleita.

Trata-se de uma “gente de bem” que costuma destilar muito ódio contra aqueles que fazem a festa e mudam o mundo, enquanto eles, como velhas topeiras rancorosas, estão entocados em seus cascos, e a única abertura para o mundo são as janelas das redes sociais, onde o que fazem é bradar seu ódio contra aqueles que fazem da liberdade real sua prática diária, querem a praça, de fato, pública; as ruas e a cidade para si, querem cores e grafites nas paredes, diferentes dos outros, cuja ideia de liberdade se restringe à visita a locais de consumo, shoppings higienizados e fechados tão somente para os que puderem pagar. É para esses que Alckimin/Dória, sua polícia armada com bombas e gás de pimenta trabalham, porque mesmo no Carnaval, a alegria e a liberdade (de sexo, gênero, crença, cor, credo) é uma afronta ao mundo pasteurizado e rotulado que querem evitar a todo custo.

Mas a praça “Roosevelt é a nossa Praça Castro Alves”, tanto que depois que a polícia passou ela foi retomada pelos mesmos “vagabundos”, “machonheiros”, “bichas” e “vadias” que fazem dela um lugar que a vida pulsa com e sem música oficial.

E nunca haverá trégua.

Que venham #Outros Carnavais.

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