Como explicar que um apresentador de TV sem audiência, com o carisma de um cashmere, tenha sido eleito em primeiro turno para a prefeitura da maior cidade do país? É relativamente fácil.01

O contexto político geral do Brasil esclarece boa parte da questão. A manipulação midiática e a ação vergonhosamente parcial do Poder Judiciário, em prol do PSDB e contra os seus adversários políticos, tem sido assombrosa, nos últimos tempos. O clima de ascensão conservadora e de condenação pública ao petismo e à esquerda é pesado demais e, hoje, é praticamente invencível, em São Paulo. Colocadas, então, as cartas na mesa, Doria soube jogar o jogo. O PSDB e as forças poderosíssimas que eles representam sabem muito bem jogar o jogo. Conhecem bem as receitas infalíveis e as manipulam com maestria. A principal delas talvez tenha sido se apropriar de um velho legado reaça da política paulista, a imagem malufista clássica do “trabalhador”, que passou a vestir o que não passava de um coxinha caricato, um playboy lobista corrupto de uma família tradicional aristocrática e multimilionária.

Além disso, percebendo o momento de aversão do eleitorado à classe política e à própria política como atividade humana, mascarou-se cinicamente o neoliberalismo tucano de Doria com eufemismos picaretas do tipo “eu não sou político” e “eu sou gestor”. “Trabalhador”, “não-político” e tucano. Com essa combinação nem uma blusa de cashmere perderia na gloriosa terra bandeirante. Pois é. Ainda mais quando esse perfil partidário se faz rival histórico daquilo que o paulistano médio mais ama odiar, o PT, por representar aquilo que o paulistano médio mais busca negar, se afastar, conjurar de si mesmo, o pobre.

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Não é só Doria que tenta se passar pelo que não é. Em uma terra onde viver deve ser igual a ganhar dinheiro, no momento de uma eleição, votar em um candidato que pareça representar os ricos significa ao menos experimentar essa vitória individual. Assim, em contrapartida, votar em nomes que se identifiquem com os mais pobres é como assumir para si mesmo a própria derrota. Em linhas gerais, essa é a lógica binária, simplista, tosca e deprimente de São Paulo. Se eu não posso ter uma SUV, como os ricos, pelo menos posso votar como os ricos, de modo que assim posso conversar na padaria de igual pra igual, ou sem ser encarado de cima pra baixo. Aliás, como um prefeito ousa mexer com o deus Automóvel, em São Paulo? Como se atreve a limitar a velocidade dos carros e a pichar ciclofaixas em seus altares sagrados? O trabalhador gestor comedor do caviar que o diabo amassou vai resolver isso para nós. Acelera, não é isso que ele dizia na campanha? Vai acelerar o que, conhecendo os dogmas tucanos e sacando o panorama político nacional? Vai acelerar o descaso do poder público, a repressão, a exclusão, a desigualdade, a cultura do egoísmo, do preconceito, da hipocrisia e da estupidez, nessa terra? Com todo esse jargão manjadíssimo de “iniciativa privada”, “privatização”, “concessões”, “eficiência”, com o vigor amplificado da FIESP, está na cara que teremos um Temer genérico à frente da capital paulista.

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Ao se julgar muito esclarecida, quando, de fato, é assustadoramente tapada, tacanha, medíocre e, sobretudo, egoísta e egocêntrica, a mentalidade hegemônica de São Paulo elege uma versão tiozão do Boça, aquele do Hermes e Renato, como se estivesse, quixotescamente, salvando a cidade do caos, do caos comunista, gayzista, ateísta, abortista, maconheirista, etc.

Pobre periferia, tristemente enganada pelo circo das elites. O sofrimento virá. E será maior do que o de Doria quando come um pastel na rua, ou quando lhe faltam docinhos caramelados na geladeira.

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