Fotografia por Vanessa Barone

Quando me dei conta que onde moro não é bonito, estava passando de ônibus por um lugar que, na verdade, achava bonito. Tava acompanhada de uma visita de São Paulo. “Como é feio aqui”, ela disse impressionada. Eu também me impressionei.

A primeira vez que percebi que minha escola não era bonita, estava levando uma visita – que estudava em colégio particular – para a Festa do Folclore. Era a semana mais esperada do ano por todos os estudantes da E.E. Francisco Antunes Filho, o Chicão. “Meu deus, essa é sua escola?”. Bom, sim. Nossos bebedouros eram tanques com torneiras, sim, mas até ali eu achava o máximo, com aquelas árvores secas na área externa. A pessoa ficou com medo e eu não entendi do quê.

Entrada pelo portão principal do Chicão

Ler o texto Aprendi que o meu CEP determinava como as pessoas me tratariam na vida, do coletivo Nós, mulheres da periferia, me fez pensar nessas e em várias outras situações que passei da adolescência à fase adulta. Em aula no curso de Estudos da África, o professor doutor Kabengele Munanga explicou algo que cabe aqui:

Nós só nos percebemos em relação ao outro.

Explico melhor.

Os brancos só perceberam que eram brancos quando saíram em suas expedições e encontraram outras etnias, pessoas de pele amarela, vermelha, preta. Inclusive foi a partir daí que começaram as teorias racistas – sim, desde o século XIV e XV –, mas isso é outra história.

O ponto é que só descobri que era periférica quando conheci pessoas que não eram, quando vi o lugar onde vivo sob a perspectiva desses olhares e quando estive na capital. É meio estranho dizer isso, porque moro em Guarulhos, uma cidade com 1.337.087 habitantes, segundo estimativa do IBGE. É uma cidade imensa, mas por ocasião da migração de meu avô nordestino para trabalhar na construção do aeroporto, eu fui me achar na periferia da periferia. Por isso posso dizer: o bagulho é louco.

É época de pipa, o céu tá cheio

Poderia passar horas enumerando as minhas epifanias tardias. A vez que uma entrevista de emprego [quase] foi negada por motivos de: “você mora muito longe” e percebi que talvez essa fosse a razão para tantos currículos enviados sem resposta – meu CEP. As piadas sobre a falta de infraestrutura, entre tantos outros et ceteras que mal me lembro.

Mas tem outra percepção importante entre essas:

Fotografia por Bruno Facchini

A primeira vez que eu vi medo nos olhos de quem estava no meu bairro.

Aconteceu muitas vezes. Olhares nervosos, de um lado para o outro, “não vão roubar a gente aqui?”, mesmo depois de garantir que estava tudo bem. Sei que é uma preocupação normal, mas estive em situações diferentes o bastante para perceber que não é uma pergunta usual, dependendo de onde você mora. Acho que só quem já passou por isso pode entender a sutileza.

A professora doutora Andrea Moassab corrobora essa compreensão em seu livro Brasil Periferia(s): a comunicação insurgente do hip-hop. Segundo ela, ocorre uma “homogeneização da periferia produzida pela mídia”, a criação desse espaço como exótico, perigoso. Prevalece uma construção de um lugar “da violência e da criminalidade, da desestruturação familiar, da pobreza, da falta de recursos, de infraestrutura e de cultura. Em outras palavras trata-se de uma não cidade no espaço fora do ideário de cidade hegemonicamente construído”. Esse ideário de cidade se refere aos lugares onde as pessoas de classe alta vivem.

Foto: R.U.A Foto Coletivo

Na faculdade de jornalismo – uma universidade para classe média alta que cursei por ter bolsa integral –, quando havia proposta de pauta na periferia e favela, algumas pessoas se assustavam com a ideia de adentrar essa terra de ninguém. Uma estranheza que talvez se assemelhe aos turistas dos morros cariocas, de sobrevoar num voo o zoo onde a gente sobrevive. Aquela coisa de, se a pessoa supera o medo, vai com esse olhar estranho e exótico descrito por Moassab. Numa dessas vezes cheguei a rir. A menina disse que não podia fazer uma matéria em Heliópolis, pois provavelmente até precisasse pedir autorização para entrar lá.

Mundo Mágico de Oz
ou Heliópolis (que pode ser visitada sem pedido de autorização)

Todas essas experiências me fizeram em determinado momento sentir vergonha e só recuperei meu orgulho no final da faculdade, exatamente durante o Trabalho de Conclusão de Curso, que foi uma comprovação de que o rap é um meio de dar voz para a periferia. Esta foi a justificativa que apresentei para a banca:

“Foi difícil sair de onde moro e ver o quanto é precário. Fiquei constrangida pelos muros pichados, as casas simples, o perigo quando alguém me trazia em casa. Assisti pessoas que brincavam comigo na infância serem presas, entrarem no tráfico de drogas, no vício ou batalharem por uma vida diferente. Eu nunca vejo a região que vivo ser noticiada se não for para falar de violência. Eu nunca vejo as histórias desses que brincaram comigo serem retratadas um jeito humano”.

No meu caso, o agente transformador foi a cultura hip-hop. Por isso continuei a justificativa dizendo que “ouço, porém, nas músicas de rap o orgulho pela quebrada onde se vive. Ouço as histórias serem contadas com emoção, com detalhes, com vida, na voz de quem sofreu e sofre por isso. O lugar onde vivo foi fundamental na minha formação como pessoa, e só no rap aprendi e aprendo a ter orgulho disso”.

Na primeira entrevista que fiz para o documentário No Submundo do Verso, que seria o meu produto final, o Poeta Sérgio Vaz explicitou em palavras o que ia no meu coração.

“O hip-hop trouxe isso à tona. Ele disse: não tenha vergonha de ser negro, cara. Não tenha vergonha de ser pobre. Quem tem que ter vergonha é esse Estado safado. É essa elite, branca, racista. Não nós. Nós somos o néctar”.

Não é que eu tenha deixado de perceber todas as mazelas, mas tudo isso, bom ou mau, constitui o que sou e, para mudar a visão, eu precisei mudar a perspectiva pela qual olhava. Comunicadora, não me vi no reflexo do espelho que os veículos tradicionais de comunicação mostravam – e ainda mostram – dos periféricos. Não me vi pois não é espelho, lembrem-se disso se olharem para as sombras da caverna.

Fotografia por Dakial

Comigo a compreensão veio pelo rap, mas existem milhares de manifestações culturais fervilhando nas periferias, em casas de cultura, saraus, festas, feitas por gente como Sérgio, que acreditam que somos muito melhores que o retrato pálido, estranho e perigoso que fazem de nós. Não se acostume com isso, que essa não é a sua vida, essa não é a minha vida. Encontre sua voz.

 

Procure a sua, a minha eu vou atrás,

até mais,

a fórmula mágica da paz.

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