Depois de um tempo considerável, retorno à escrita das colunas na SOUL ART. De antemão peço desculpas pelo “sumiço”, coisas dos percalços de uma tese por ser finalizada, a saúde da esposa e de nosso poderoso e divertido Yorkshire, de nome Jimmy Page, que inspiraram cuidados.

Finalizei nesse período uma tese de título “Banco Central e os sentidos sociais em política monetária: as justificações morais distintas dos usos sociais do dinheiro”. A intenção era buscar abrir a “caixa preta” dos argumentos técnicos da economia e das finanças sobre a justificação dos altos juros; a matemática e a estatística em geral fazem com que as justificativas não sejam compreensíveis para o grande público, escondendo a falta de neutralidade e o peso em favor das instituições financeiras em detrimento da população tomadora dos empréstimos; essas decisões são em geral apresentadas como modernas, neutras e cheias de “requinte”, mas escondem uma cruel desproporção em favor dos detentores de capital.

É necessário compreendermos esse processo, uma vez que os juros altos representam da transferência de recursos da base para o topo da pirâmide social, não raro contribuindo para a pobreza e desemprego, mas por razões distintas do que os próprios economistas muitas vezes apontam. É necessário fazer essa ponte interpretativa de uma maneira compreensível e desfazer a visão de que a economia é uma ciência exata e entender suas dimensões como instrumento político em favor de determinados grupos em detrimento de outros.

Ao vermos as taxas de inadimplência (quando as pessoas não pagam as suas dívidas), me vi surpreso com uma taxa em torno de 5%, o que significa que aproximadamente 95% dos brasileiros pagam suas dívidas, em média.

Como então justificar juros tão altos, entre os maiores do mundo?

Para entendermos esse processo, trato do conceito de profecia autorealizante de Robert Merton, mas de uma maneira mais simples para não reproduzir o que a economia faz conosco, ao nos distanciar do sentido implícito nos modelos. Explicando: por acaso você já ouviu aquela história de uma mentira mil vezes contada passa a ser compreendida como uma verdade? Ou ainda, não estamos nós vivendo em um período em que se fala tanto das Fake News e a influência disso até na eleição de Donald Trump?

Há sérios sinais de que grandes grupos midiáticos distorcem notícias, como uma espécie de Fake News, em geral direcionado a construir consensos e ações dos receptores, seja intencional a algum interesse econômico ou como manifestação das crenças daqueles que são postos a controlar as linhas editoriais. A diferença em relação ao Fake News é que as redes sociais apenas quebraram o monopólio da manipulação da informação, fugindo paradoxalmente até do controle desses grandes grupos midiáticos.

Uma vez que o jornalismo econômico publica que 5% das pessoas não pagaram suas dívidas com os bancos, em vez de falar sobre os 95% que pagaram suas dívidas, os títulos das reportagens e o texto podem induzir as pessoas a ter a sensação de que a maior parte das pessoas não paga suas dívidas, escondendo algo que está implícito: a grande maioria dos brasileiros honra suas dívidas.

Suponha que uma reportagem diga que de janeiro a fevereiro a inadimplência aumentou de 5% para 5,2%, ignorando que esse pequeno endividamento a mais pode ser sazonal, ou seja, em janeiro as pessoas têm IPVA, IPTU e outras dívidas, mas depois elas se recuperam; para fazer esse aumento parecer maior, pode-se manipular os números e dizer que aumentou 4% (0,2/5) o número de endividados em um mês, dando a sensação de que há uma escalada de endividamento.

O que é reforçado neste tipo de reportagem é construir um marcador moral e cultural no brasileiro, que seria “gastador”, “irresponsável”, “indolente”, adepto do Carpe Diem, sem pensar no futuro, ao passo que as instituições financeiras seriam “poupadoras”, “responsáveis” e que realizam sacrifícios de não gastar dinheiro e oferecer a essas pessoas empréstimos e, dessa maneira, merecem juros maiores como “recompensa” e o brasileiro, a “punição”, colocando a dívida como uma questão moral antes de ser técnica. Há aqui, a reprodução da construção do “homem cordial” de Sérgio Buarque ou ainda o famoso “malandro”, que não faz mal a ninguém mas é “indolente”.

Basta que essa imagem seja revisitada, para que facilmente os bancos consigam impor a elevação dos juros e a sociedade aceite isso; as reportagens de economia doméstica reforçam essa idéia de responsabilidade dos tomadores de empréstimo. Daí um conceito interessante: inércia cognitiva – a sociedade pende a ter determinadas interpretações e basta reiterar uma narrativa, para que as tentativas de reação a elas seja desfeita; para ficar ainda mais fácil de entender isso: os países que mais resolveram sua criminalidade resolveram isso com educação e redução de desigualdades, bem como a re-socialização dos detentos; no Brasil, basta que haja um assassinato, em geral de alguém de classe média ou alta, para que ganhe força a máxima “bandido bom é bandido morto” e projetos de aumento de punições fiquem na ordem do dia no Congresso.

O Estado brasileiro, nesse contexto, seria o “maior dos brasileiros”, como analogamente o “irresponsável que não pensa no futuro”, realizando a associação das contas do Estado como se fossem as contas de uma família e seria necessário apertar os cintos quando as coisas não vão bem financeiramente.

Essa associação é, do ponto de vista analítico absurda, pois o Estado tem arrecadação de impostos (que podem variar em função de incentivos e aumento da atividade), empresas públicas podem dar retornos em dividendos e podem realizar gastos para aquecer a economia e elevar a arrecadação posteriormente; a família por outro lado tem uma renda mais ou menos fixa e não teria essa margem. Mas o que produz realidade é a inércia cognitiva, com a associação de que contas de Estado são como contas de família; cortes de gastos, no entanto, incidem muito mais sobre gastos sociais e nos impostos de consumo do que na renda e os juros da dívida pública novamente favorecem os bancos, indicando que esse discurso tem endereço certo.

Com isso, se reforça o consenso de que há um descalabro e que as famílias e o Estado não vão pagar suas dívidas. Desse jeito, parece haver uma dissimulação técnico-moral para sempre justificar os juros altos: quando os preços dos produtos sobem, os juros devem ser altos para que as pessoas não realizem prestações e as empresas não realizem investimentos, evitando ter mais demanda do que o mercado pode oferecer. Por outro lado, isso pode causar desemprego e redução da atividade econômica, bem como a elevação da inadimplência e, novamente, entra em curso a necessidade dos juros altos por conta da inadimplência, fazendo com que as pessoas não tenham capacidade de pagar, gerando a própria justificativa dos juros; é um ciclo de profecia auto realizante.

No retorno de minha coluna, aproveitando o ensejo, deixo essa reflexão para mostrar como o jogo com as informações podem ser utilizados para aumentar os juros sobre as famílias e o Estado, como uma espécie de política de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. Talvez, em termos de moral, precisaríamos inverter esse raciocínio estabelecido pela grande mídia e as instituições financeiras, entre quem seriam os irresponsáveis e aqueles que realmente fazem sacrifícios, uma vez que o 1% mais rico se beneficia do rentismo e os indicadores sociais brasileiros continuam a ser sofríveis.

Fica para pensar e convido os mais curiosos sobre esse tema, caso queiram se aprofundar, a ler a tese, deixe seu comentário.

Abraços efusivos.

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Sobre o autor

Professor / Engenheiro

Oriundo da periferia, graduado pela USP e pós-graduado pela UFSCAR em assuntos críticos na fronteira entre o político, econômico e social no topo e na base da pirâmide. Atualmente professor na UFGD e descrente na meritocracia, especialmente a que não discuta os pontos de partida; mais interessado em empoderamento da agricultura familiar em assentamentos e aldeias indígenas – após subir as escada, podemos estender a mão para que outros subam; não sou da turma que chuta a escada após subir.