“Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!”
(Castro Alves)

Fotografia por Gabriel Alexandre

O sol já não tinha a mesma força,  quando os barcos iam chegando à praia, um a um. Entre vozes e velas, era o Itapeti que as crianças esperavam. Dentro dele vinha vô Matheu e o jeito só seu de pescar pessoas e dizer as coisas. Forte sem o ser, riso superior sem o ter…

Nem havia tempo de aportar e aquela nuvem de pequeninos envolvia o velho pescador para dele receber as bênçãos do convívio e poderem se alimentar.

Abraçado por tantas mãozinhas,  sentia-se agraciado também por aquelas pessoinhas que iam escolhendo ver, entre tantas imperfeições,  o que  ele tinha de melhor.

– Conte-nos uma história, vô, por favor! E os pedidos iam se multiplicando, e a vontade de pedir e aparecer para o vô querido…

– É! Conta uma bem bonita! Queria a menina.

– Uma de “torror”! Era o outro que pedia…

– Mas que história vocês querem ouvir? Já lhes contei tantas… nem sei se tem mais alguma que eu não tenha contado…

– Deve ter, deve ter!

– Conta uma sobre o mar…

– Não. Sobre o mar, não! Lembra que ele disse que o mar não faz nada pra ajudar, às vezes? “Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!”… era um coro que declamava o trecho do Castro Alves, versos ensinados em brincadeira de decorar.

– É mesmo, O navio negreiro…

No afã de resolver o problema com que se debatiam as crianças,  perguntou-lhes a pretexto.

– Que dia é hoje?…

Começava com uma pergunta difícil. Para as crianças, quando muito, o que havia eram as palavras. O tempo era só aquele agora, os números mal combinavam com a abstração inexplicável daquele sol e daquele mar cheio apenas daquele instante que passava.

Alguém lembrou de perguntar ao seu Osvaldo, da vendinha, senhor prático que convivia com o poder. Respondeu, então, de primeira, sem hesitações, lustrando aquele balcão sempre limpo, sempre à espera de freguês.

– 5! Hoje é dia 5 de janeiro. Voltava correndo, assim, o primeiro pequenino que desvendava o  mistério inicial daquele contador de estórias, detido que estava, então, com as redes diáfanas brilhando sob o ocaso.
A informação o fez parar, assentar-se na canoa que secava com o casco virado para secar. Revirando a memória, começou a contar…

– Então hoje é dia dela!… a voz ia baixando, como a de alguém que vai ressentindo os acontecimentos na memória e as palavras vão se indo dizendo sozinhas.

– De quem, vô?

– De ninguém. Foi só pra ter uma ideia… só pra lembrar.

– E do que o senhor lembrou?

– “Houve um tempo,…” Era o que bastava para todas as crianças se acomodarem, certas de que seriam salvas, por alguns momentos naquele dia simples.

… em que chegou a essa praia uma moça encarregada de cuidar dessa gente daqui.

– De todas as pessoas?

– Sim, de todas, mas principalmente das crianças feito vocês… era cheia de cuidados e encantos, tomando conta para que ninguém se afogasse ou se perdesse. Preparava o alimento e os abraços e os sorrisos, fazendo aumentar o oceano e a fé sobre nós… amava as crianças – todas! – preparando-se, sem saber, para ser a mãe que inda não era…. Vinha das bandas do ribeirão acima e trazia um mundo sem saber…

E as crianças iam ouvindo e se desprendendo, totalmente absortas na voz e nos gestos do pescador. À medida que ouviam, iam amando aquela mulher que havia deixado a marca de seus pés naquela areia, de modo indelével…

A certa altura, ouviu-se mesmo uma vozinha dizendo: “que pena que ela não está aqui agora. Às vezes eu sinto falta de alguém assim, cuidando de mim…”

Foi o irmãozinho que o protegeu num abraço pequeno para dizer, sem palavras, que nunca estamos tão sós como supomos…

– Ela era sua amiga, vô?

– Sim…. ela era minha amiga… às vezes eu a ajudava a cozer… às vezes ela ajudava o vô a pescar…

– E por que ela foi embora?

– Ah, era um tempo de trevas!… nesses momentos,  em que O Acaso manda refrigérios pra gente. Foi no tempo do Leôncio Félix, o estúpido, e de Dona Cícera Barata, bruxa poderosa, que congelava as pessoas só com sua voz de maldades!…

Um dos meninos, inconformado, perguntou:

– Mas ela não era uma pessoa tão boa?

– Às vezes ser bom demais incomoda o redor, crianças. Ela era diferente… Anastácia tinha os olhos muito, muito brancos. Olhar de vidro…

– Mas isso não é motivo, vô. Tá errado! Não tá?

– Não, não está. Não se aprende de outra maneira. Todos aprenderam… ou aprenderão. Ela, as crianças, quem a perseguiu…

Foi quando um outro menininho lembrou:

– Não foi nesse tempo que tinha o Dom Camaleão, o terrível homem “sem forma e sem face” que ia se transformando só para fazer o bem só a si mesmo e o mal às pessoas que não fossem ele só?

– Sim, isso mesmo, rapazinho…

– Tenho raiva dessa gente, muita raiva! Disse a menininha de olhos muito pretos.

– Ah, eu também já tive, minha amiguinha, mas, sabe? não adianta muita coisa… Nem se nos esforçássemos muito, jamais conseguiríamos fazer o mal para elas, na mesma intensidade que elas – só elas – são capazes de fazer a si mesmas. Além do mais, soubemos, depois que Anastácia cumpriu o que devia.

– Mas e toda essa gente do Mal, nada se faz contra eles?… Éh, não é justo!… É?…

Quando o velho notou o amor com que todos defendiam a pessoa que até há poucos minutos só ele conhecera, riu seu riso quase alto.

– Essa gente não é tão má quanto parece crianças. Ninguém é. A maldade ainda menos. Além do mais, quando mesmo podendo escolher, as pessoas aceitam a estupidez, sua crueldade mesmo as pune tirando delas o convívio,  os cuidados, o amor que podiam ter dos que eles perseguem…

Quando disse isso, porém,  havia um rastro de lágrimas nas últimas palavras…

– Mas… por que  você tá chorando, então, vô? E foram cercando e se preocupando, dividindo aquela sombra de ar pesado na alma do velho.

– Não é nada, crianças. Vovô está ficando velho e chorão. E a saudade deixa a gente assim… com o olhar anuviado. Disse isso olhando lá no ponto onde céu e mar se encontram.

E a estória termina com todos, todos… com o mesmo olhar de vidro… os mesmos olhos… de Anastácia!…

(Mais textos de Valter de Moraes no link: medium.com/@valterdemoraes)
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