Viver é afinar o instrumento (de dentro)
De dentro prá fora
De fora prá dentro
A toda hora, todo momento”
(…)

 “Tudo é uma questão de manter
A mente quieta
A espinha ereta
E o coração tranquilo” (..)

(Walter Franco, Serra do luar)

– Tem certeza de que está tudo bem?

– Sim.

– Não sei, você parece estranha. Tem andado tão calada…

– Impressão sua. Estou bem, sim. O que poderia estar acontecendo? Está tudo bem, fique tranquilo.

– Você tem tomado seus remédios? Direitinho?…

– Sim.

Despediram-se no portão de casa. Cada um foi para o seu trabalho, como sempre acontecia. Há décadas. Mas se a conversa no café, ponteada de tantas lacunas ficou insistindo em voltar na cabeça dele, na dela durou só aquele instante.

O receio foi companheiro do marido naquele dia. Tinha medo pela mulher que, de uns tempo para cá, sorria tão pouco. Quase não se lembrava do riso dela. Eram tão companheiros, ele pensava, mas não riram juntos mais. Nunca mais. A bipolaridade dela parecia controlada. Haviam superado tantas crises… no primeiro semáforo, lembrou-se de quando ela saíra sem destino… já fazia tempo. Os documentos dela foram encontrados no shopping. Ela só aparecera no dia seguinte. O sol pintava de vermelho aquela manhã gelada, olhar fixo no horizonte, alma vagando pelo quintal… As buzinas ensandecidas dos automóveis, impedidos de passar, trouxeram-no de volta para o trânsito. E o trabalho consumiu seu dia como sempre acontecia.

No outro carro, ela seguia para o escritório em que era analista fiscal. Era um dia importantíssimo. E os números a esperavam. Além deles, uma legião de outras minúcias indispensáveis para a vida da empresa. No carro, com ela, um silêncio conhecido. Mas, diferente do marido, no espaço em que estava, nada havia: nem medo, nem preocupações. Também diante de um sinal, parou e esperou. Devia pegar a próxima à direita, depois do farol. Abriu. Mas seguiu em frente. Olhou ainda pelo retrovisor a imagem da empresa ficando cada vez menor e longe, longe…

Seguiu para o litoral. Dali eram mais ou menos umas três horas. Seguiu sem sentir a estrada. Não havia cansaço, nem animação, nem tristeza, nem preocupações. No caminho, foi seguindo devagar e em total segurança. Foi olhando paisagens redescobertas. O verde da serra, incapaz de emocionar; as águas das cachoeiras, incapazes de emocionar; as aves… as coisas… e pessoas, tudo, tão incapazes de a trazer de volta. Uma atenção letárgica apenas. Tirou o relógio caro, presente do marido. Jogou-o pela janela, sem raiva porém. Delicadamente, deixava pela estrada o tempo de que não precisava. Um instante mais e parou o carro na serra. Tirou o sutiã que a apertava e caminhou com ele nas mãos até uma lata de lixo. Voltou a passos esquecidos até o carro. Sentia o tecido da camisa nos seios livres, sem, entretanto, ter-se livrado da dor que vinha de dentro. Sem a liberdade que queria ter.

Fotografia por Gabriel Alexandre

O celular tocou. Era o filho. Parou o carro, exatamente.  Ficou assistindo à luz do aparelho vibrando a sua frente. Quem a visse com aquele telefone nas mãos, interpretaria que havia emoção naquela cena: uma mãe que espera notícias do filho ausente. Adulto, formado, bem sucedido, homem de sucesso, como tantos, alheio aos sofrimentos e pesares de pais que deram o que nunca tiveram para si. O que nunca teriam… Quando o objeto silenciou, saiu do carro ainda uma vez. Procurou o que não sabia querer encontrar. Um córrego. Beijou o celular com a ternura que queria para si e deixou-o se afundar nas águas rasas, mas competentes para deixá-la sozinha, como sempre todos a fizeram se sentir.

Chegou á praia desconhecida que a chamava há tanto tempo. Naquela quarta-feira, o sol era comportado como ela sempre fora. Tirou os sapatos, a calça, a camisa. Aproximou-se da areia, mas ainda nada sentia, além do vento morno e areia dizendo a seus pés finos. Não encontrou o que havia ido buscar. No entorno, nada. Ninguém. Nem homens, nem mulheres para olhar, mexer, tocar, … Ajoelhou-se e viu-se nua. Sem o marido, que sempre lhe havia sido tudo; sem o filho, que sempre lhe havia sido tudo.

Instintivamente começou a cavar. Ia se enterrar. Fazer como algumas pessoas já vistas. Ridiculamente enterradas na areia. Cavou, sentindo entre a carne dos dedos e as unhas tão bem tratadas a areia se encravando, ferindo e fazendo sangrar. Foi-se cobrindo como o planejado, quando uma criança chegou-se bem perto. Uma criança!? Onde anda a mãe desse ser intruso?

– Ah, você achou uma amiga, filho? Oi, ele está incomodando?

– “Sim, está. Tire-o daqui e vá junto.” Não raiva na sua voz. Verdade apenas. Verdade de quem já está enterrado.

– Ah… Vamos, então, filho. Que gente que não gosta de criança, pra mim, é louca!

A enterrada teve pena da tentativa frustrada daquela mãe ofendida, cumprindo seu papel. Boa performance, admitiu. Mas loucura em ambas era um fato, diferença de consciência apenas. Quanto à criança, era uma questão de tempo também…

O dia acontecendo e ela ali toda cheia de areia. Sentiu-se coçar inteira. As ondas chamando, chamando… Era o nome dela que diziam:

– “A… na!… A…na!…” É a hora, intuiu. Foi-se descobrindo, se descobrindo… tinha de ir. Assim, daquele jeito. Sem nada. Deixou a areia como quem deixa a cama do quarto querido. E saiu da casa que julgou ter construído… As águas apagariam seu leito, apagariam sua importância nenhuma. Na areia, faria a mesma falta do que em qualquer outro lugar. Tinha de ir. Foi caminhando lentamente, lentamente… A água morna ficando fria, fria… Quando em certo momento uma vaga estúpida a acertou no rosto, olhou-se para baixo e o Sagrado se mostrou: a transparência. Viu suas pernas, seu tronco sendo lavado pelo mar e se desprendendo de seu corpo equivocado os brilhos da areia e do sal. Minúsculas estrelas voando debaixo d’água num espetáculo de beleza que sempre existiu! Era tanta… Beleza! Tanta! Que chorou. Muito! Por muito tempo. Com aquele sol manso e amigo nos ombros cansados. Perdoados, então.

Nada se soube mais dela por ali. Talvez tenha voltado para família renovada; talvez tenha seguido uma vida só para si; talvez tenha tido o mesmo fim de Alfonsina Storni…talvez, talvez… mas não faz a menor diferença agora, que ela se tornou lenda. História!… tão bela de contar.

Quer receber nosso conteúdo?
[popup_anything id="11217"]