Mesmo quando não chega ao conhecimento da justiça comum, o estupro também é tratado por uma espécie de justiça paralela. Exemplo disso são as penas alternativas aplicadas pelos próprios presos aos molestadores de mulheres. As agressões vão desde espancamentos, até mesmo a morte.
A discussão em um passado recente no Brasil sobre a condição da “mulher honesta”, e formas de avanço até que “a liberdade seja nossa própria substância”.
Considerando a evolução jurídica e cultural do estupro, podemos começar com um trecho do jurista Noronha, em que afirma:
“O indivíduo que acomete uma mulher para manter relações carnais, violando, assim, o seu direito de escolha, postergando a liberdade que ela tem de dispor do corpo, demonstra instintos brutais dignos de severa repressão”.
Em praticamente todas as civilizações atuais o crime de estupro é punido de forma severa , sendo considerado uma das infrações mais graves do ordenamento jurídico brasileiro.
No Brasil, a primeira legislação penal já previa sanção para crime de estupro. Tal sanção era a morte para aquele que cometesse o crime, independente de julgamentos subjetivos exteriores, ou seja, sendo a mulher considera sob o estereótipo de “honesta” ou não, escrava ou não, profissional do sexo ou não… a pena de morte era generalizada, aplicada tanto aos agressores quanto aos partícipes (mesma pena para aqueles que colaborassem com ajuda, apoio ou conselho). Nesta primeira legislação penal brasileira, nem mesmo o perdão da vítima ou o casamento afastava a morte.
Após, passou-se ao Código Criminal do Império, em 1830. Nesta época, passou a ser considerado crime de estupro apenas o sexo sem consentimento com mulher honesta, sendo a pena variava de prisão ao pagamento de um dote à vítima. Caso o estupro ocorresse contra uma profissional do sexo (prostitutas) a pena de prisão que poderia variar de 03 a 12 anos seria reduzida de 01 mês a 02 anos, não se aplicando sanção àquele que se casasse com a ofendida.
O Código de 1832 também trazia algo sobre estupro, como por exemplo a inovação de que se a menina fosse menor do que 15 anos poderia ser aplicada a pena de trabalhos forçados ao agressor.
Ocorre que, em nenhum desses Códigos havia a nomeação “Crime deestupro” tal e qual conhecemos hoje. Esta apenas se deu no Brasil no Código de 1890, artigo 268 do Código Penal, com o seguinte texto:
“Chama-se estupro o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não, mas honesta. Pena – se a estuprada for mulher honesta, virgem ou não, um a seis anos de prisão celular. Se for mulher pública ou prostituta a pena é de seis meses a dois anos de prisão”.
Assim ficou nosso Código Penal até o “atual”, de 1940 (ao qual já passará por reformas, vez que com mais de 70 anos não está mais tão atual assim).
Isso significa que até 1940, no Brasil, apenas as mulheres honestas tinham seus direitos amplamente resguardados pela legislação penal em caso de estupro.
Mas, fica o questionamento, o que é ser uma mulher honesta?
Antes de nos aprofundarmos em tal questão, importante frisar que tal termo mulher honesta só foi retirado por completo do Código Penal brasileiro em 2009. Apesar de não aparecer mais no crime de estupro ( Art.. 213 CP), ainda aparecia em artigos como o 215 (violência sexual mediante fraude) e 216 (assédio sexual).
Esse termo veio para colocar a falta de medida entre o crime ocorrido, e o poder de polícia que a sociedade se acha no direito de exercer sobre a moral da mulher, desvalorizando em todos os sentidos sua dignidade e direito a liberdade. São consequências das ideologias e ideias patriarcais expressos na legislação e legitimadas pelo Estado.
Mesmo com o termo “mulher honesta” tendo saído de nossa legislação, ainda hoje, temos esse atraso muito marcado quando o tema é o “Estupro Marital”. Essa discussão sobre a possibilidade do marido / companheiro / namorado cometer o crime de estupro contra sua parceira já é antiga, pois o sexo aparece como uma das obrigações dos cônjuges no código civil, e isso sem levar em conta o bem jurídico (dignidade sexual) tutelado pela norma.
O Código Penal, ao tutelar os “bens jurídicos pelos costumes”, onde se enquadra o Estupro, visa defender as escolhas e disposições individuais no aspecto sexual (aquilo que o indivíduo vai fazer com seu próprio corpo). Dessa forma, sóhaverá estupro quando o sujeito constranger (obrigar, coagir) alguém mediante emprego de violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (Art. 213 CP).
Hoje, após a Constituição de 1988, mesmo não estando expresso na tipificação legal, fica óbvio que pelos direitos reconhecidos às mulheres no nosso ordenamento jurídico não há mais em que se falar em obrigações conjugais. Se um crime viola a dignidade sexual da mulher, não importa a relação de parentesco ou amizade que a vítima possui com o sujeito ativo. A lei deve existir para proibir o crime contra a liberdade sexual da mulher, seja qual for seu estado civil, dando a ela pleno direito de dispor sobre seu próprio corpo. Os direitos e deveres matrimoniais pertencem à esfera do direito civil / de família e por ele devem ser tutelados, não podendo servir para ocultar o machismo nem o delito ou servir de justificativa para condutas inescrupulosas.
Assim, vamos avançando pouco a pouco na desconstrução histórica enraizada do machismo em nosso ordenamento jurídico, lutando pelos direitos das mulheres até o dia em que tais situações fiquem claras e lutando para que, conforme pensamento de Simone de Beauvoir:
“Que nada nos limite, que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja nossa própria substância”.
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