Não precisa ser nenhum entendido para perceber a clara relação de descendência que há entre o hip hop e alguns gêneros mais antigos da música negra, como o funk e o soul. É preciso, porém, não parar por aí: há muito mais coisas entre James Brown e J Dilla do que imagina nossa vã filosofia.
Encontrar os elos perdidos que amarram as duas pontas da evolução é a nossa chance de entender como funciona a genética da música. Se Charles Darwin foi inspirado em sua tese pelas espécies de Galápagos, o motivo deste estudo chama-se D’Angelo, um artista capaz de nos fazer imaginar como seria Marvin Gaye se tivesse crescido nos anos 90.
A comparação com o grande cantor da Motown não é por acaso: Marvin e D’Angelo acumulam infinitas semelhanças em suas vidas. A começar pelo berço, já que os dois nasceram dentro da Igreja Protestante, ambos filhos de pastores. Durante a infância, tiveram uma criação rígida dentro da religião e encontraram refúgio na música gospel. Na adolescência, influenciados por estilos como o Doo-wop (Marvin), o Hip Hop e o Soul (neste caso, Marvin Gaye já fazia parte da influência), os dois participaram de bandas como backing vocals.
Já artistas, tanto Marvin quanto D’Angelo se caracterizam por serem multi-instrumentistas e por terem produzido grande parte de seus discos. Isso porque ainda não falamos do jeito de cantar: Se o primeiro enlouquecia sua audiência feminina ao derretê-las com Sexual Healing, entre gemidos e sussurros que estavam muito além do aceitável para sua época, D’Angelo acrescenta a isso uma dose de Prince e dialoga com as pulsões mais íntimas de suas fãs apaixonadas. O clipe de How Does It Feel deixa claro, entretanto, que os dois fazem parte de épocas diferentes.
O som de D’Angelo tem raiz, mas é urbano. É moderno. Embora não esteja desconectado de suas influências, seu RnB não é nenhum cover do passado. Ao mesmo tempo, pode-se encontrar nele a essência atemporal presente em seus heróis: a geração que cresceu ouvindo Wu Tang Clan irá se identificar; quem prefere Al Green também irá gostar. Afinal, será que nos dias de hoje, os grandes nomes da Motown não soariam assim também? Se às influências do gospel, do blues e do jazz acrescentássemos o rap? Se em vez dos problemas dos anos 60 e 70, sofressem e sorrissem como um jovem de algumas décadas seguintes? A Teoria da Evolução na música não é nada linear.
Para constatar se é ou não heresia colocar D’Angelo dividindo um parágrafo com Marvin Gaye, o leitor não terá que garimpar muito. Embora já sejam 18 anos de carreira, contados a partir do lançamento de seu clássico disco Brown Sugar, o cantor de Richmond só tem “apenas” mais um disco de estúdio lançado. Entre aspas porque estamos falando de dois dos discos mais importantes do Neo Soul. O primeiro por ser um dos pilares do estilo, o segundo, vindo após cinco anos de espera, Voodoo (2000), por ser a mistura quase perfeita do soul com o rap e a consagração de D’Angelo como artista.
Treze anos sabáticos depois, em que o cantor tem atuado como produtor e dado as caras apenas em participações especiais nos discos de gente como Lauryn Hill, Common e Snoop Dog, ou virado notícia por problemas com a lei, parece que o tão aguardado terceiro disco vem aí. “Parece” porque a previsão inicial de lançamento era 2009, depois prorrogada para 2010, 2011, 2012, e agora 2013. Segundo Questlove, baterista do The Roots e um dos envolvidos no novo trabalho de D’Angelo, as gravações estão 99% concluídas. E acrescenta: “Vai demorar uns 10 anos para esse disco ser digerido. Do jeito que essa sociedade trabalha com música, capaz de julgar se algo é ou não um clássico na primeira audição, será possível fazê-lo em 30 segundos com esse álbum”.
No ano passado, D’Angelo voltou a fazer shows e apresentou ao público algumas de suas novas composições. Minha opinião é que seu novo disco será realmente o melhor dos três, a obra-prima da trilogia: há treze anos o cantor vem procurando sua musicalidade ideal, trabalhando meticulosamente em cada detalhe, condensando em poucas faixas toda a sua evolução como músico e produtor. Para quem não o conhecia, ainda há tempo de correr atrás de Brown Sugar e Voodoo e entender o otimismo deste que vos escreve. Chamado de James River na internet, o novo tento de D’Angelo nascerá um clássico e escreverá definitivamente o nome do cantor na história da música. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça!
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