Se o Carnaval também é o tempo de gritar o que nos asfixia, a Paraíso do Tuiuti, do Rio, fez isso como poucas vezes se havia visto em um desfile de escola de samba, e, como se diz, lavou a alma de milhões de brasileiros. E mais: nos mostrou que ainda há luta.
Um outro clichê bastante comum nessa época do ano – no caso, daqueles que costumam brotar de um suposto esclarecimento de classe – diz que o povo brasileiro deveria usar a disposição que tem pra fazer Carnaval para lutar por um país melhor. Quem repete esse tipo de coisa consegue a proeza de viver no Brasil e não entender o que é o Carnaval. O Carnaval, além de ser uma celebração festiva, é também espaço de contestação e de subversão. Quantos desfiles de escolas de samba não têm feito críticas, ao longo dos anos, mostradas ao mundo todo, à conjuntura político-econômica nacional e aos traços mais cruéis da nossa história? Por que isso não é uma manifestação legítima? Lutar por um país melhor é só quando a Globo manda? E quando o povo sai às ruas em nome de bandeiras não erguidas a princípio pelos poderosos, o que costuma acontecer é repressão pura e simples – e geralmente aplaudida pelos que pregam o uso da energia do Carnaval para fins reivindicatórios. Além do que, vale lembrar aqui, a ideia central do Carnaval, historicamente e sociologicamente, é a de ser o tempo da exceção, de ser a época em que os papéis se invertem e, portanto, é quando os de baixo podem brilhar. Até esses quatro ou cinco dias de festa popular incomodam? Nem isso essa gente merece?
Entre uma série de situações que questionavam o status quo, durante esse Carnaval, sem dúvida nenhuma é preciso sublinhar a coragem da Escola Paraíso do Tuiuti, que escancarou para o mundo uma parte muito significativa da História do Brasil – do passado e do presente. O enredo Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?‘ conecta o atual momento do país com o que ele sempre foi, ao apresentar o projeto político-econômico da Era Temer como o resultado da manipulação exercida por grupos poderosos que só reconhecem um interesse nacional: o seu próprio interesse. Dá pra sustentar, inclusive, dada toda repercussão no país e lá fora, que o desfile artístico da Tuiutí de 2018 foi uma das mais contundente manifestações políticas do Brasil pós-golpe – se não a maior delas – e isso é imensamente maior, do ponto de vista histórico, do que um troféu em uma competição cujos critérios, decisões de jurados e influências são bastante obscuras.
E a Rede Globo, que acha que é dona do Carnaval e do país, teve de mostrar, entre envergonhada e constrangida, os amarelinhos paneleiros controlados pelos cordões da mídia da qual ela é a expressão máxima. E teve de mostrar Michel Temer representado como vampiro. E teve que engolir seco, diante da constatação de que ainda existe resistência.
A narrativa apresentada pela Tuiutí para desvelar a história nacional – fundada na questão da exploração desumana do trabalho, advinda da escravidão e que até hoje carrega suas implicações – vem despontando nos meios acadêmicos como contraponto substancial à clássica interpretação de que o maior problema do país é a corrupção, que por sua vez seria o resultado de nossa colonização de cunho patrimonialista e do caráter cordial do brasileiro. Acontece que o discurso anticorrupção, estrategicamente, acabou se tornando hegemônico na grande mídia e no senso comum, de modo a permitir que se constituísse fundamentalmente em um meio pelo qual certos grupos economicamente poderosos alcançassem o poder e passassem a implementar um projeto político que inegavelmente reforça a outra grande mazela brasileira, a questão da exploração – pra não dizer que faz intensificar também a própria corrupção, ao deixá-la distante dos holofotes da grande imprensa, sua aliada de primeira hora.
É interessante perceber que na bibliografia utilizada pela Tuiuti para compor seu enredo, destacam-se obras como Dicionário da escravidão negra no Brasil, de Clóvis Moura; O abolicionismo, de Joaquim Nabuco; A escravidão no Brasil, de Jaime Pinsk; Trabalho escravo – a abolição necessária, de Rodrigo Garcia Shwarz; A elite do atraso – Da escravidão à Lava a Jato, de Jessé de Souza; e Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas, de Ciro Flamarion Cardoso. Se o senso comum, ao invés de reproduzir preconceito mal disfarçado e um anticomunismo infantil, lesse alguns desses livros, aí sim, quem sabe, teríamos condições de dizer que poderíamos ser um país muito melhor.
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