Quem não se sente reticente àquela pessoa que dá muita importância à forma e despreza o conteúdo? O historiador brasileiro Nicolau Sevcenko, em sua obra A Corrida para o Século XXI – No Looping da Montanha Russa aponta que, com a aceleração do tempo no cotidiano da vida das pessoas, passamos a usar a visão como praticamente único instrumento de julgamento em nossas relações pessoais e instantâneas do dia a dia, onde devemos escolher as pessoas nas quais vamos depositar nossa confiança, mesmo que seja por um curto período de tempo. As relações se tornaram visuais. A forma tem sempre uma capacidade maior de atração. Entendemos, portanto, que dar valor ao conteúdo é algo absolutamente raro no mundo atual depois que você descobre o que “é” belo.
Forma, entre outros significados, é o modelo ou norma pelo qual uma coisa existe ou se manifesta. Na música, ela equivale à sequência de notas, ao casamento entre cordas, metais, percussões e vozes, a escolha dos tons e a variação deles, sempre em harmonia. A beleza da música é como a beleza do corpo humano, ela é apreciada de maneira sensorial, mas, nessa primeira, é contemplada pela audição. Por essa diferença não costumamos aplicar a explicação de Sevcenko para a música, simplesmente por ela não despertar uma atração especificamente visual. De qualquer maneira, existe o apelo sensorial que é sobressalente à racionalização de todo o conjunto (forma mais conteúdo).
Seja nas nossas relações interpessoais herdadas do começo do século XX, seja na música ou em qualquer tipo de arte, privilegiamos a beleza, embora muitas vezes gostemos de negar isso. Alguns alegarão que certas músicas não são bem “bonitas” de se ouvir, como os hardcores brutais, e até alguns raps sangrentos. É verdade. Mas essas músicas são, para os que gostam, sedutoras. Assim como numa paixão inesperada e arrebatadora algo lhe seduz e você não sabe dizer bem o que é. Os riffs altos da guitarra, o relacionamento das pancadas ensurdecedoras da bateria com a voz grave do baixo, as rimas rápidas e o compasso das batidas… Tudo isso é a forma pela qual essa música aparentemente pouco bonita nos seduz.
Qual a função do conteúdo na música, portanto? O que seria o conteúdo? Ele é o teor, é o que está contido. Entenda esse contido como algo que teima em se manter escondido sob a forma, é a parte tímida da composição musical. Muitas das vezes entendemos o conteúdo como a letra e, sim, pode ser, mas quando nos apaixonamos por ela é porque, geralmente, ela também tem a forma perfeita. Palavras sedutoras e bem casadas com o instrumental. Nesse cenário, o conteúdo é o que menos importa de fato. Para o bem ou para o mal.
Então, onde fica o reconhecimento de quem expressa as ideias, seja nas letras ou na combinação de sons instrumentais? Verdade é que, principalmente entre os especialistas da arte, o conteúdo quase sempre é visto como algo menor, como é possível observar em críticas artísticas. Quando se critica o trabalho de alguém, salvo exceções, é pelas imperfeições na forma.
Nessa ânsia que os conhecedores da arte têm em analisar a forma, ou seja, as características peculiares a cada manifestação artística, eles criam restrições para que façam uma análise de conteúdo mais rica. O leigo, ao contrário, exatamente pela dificuldade que tem de entender as combinações técnicas de uma música ou de um filme, acaba por se apegar mais à mensagem. Nesses termos, a arte passa a ser vista com um certo caráter de fé pelo leigo, que confia na “palavra” – aqui entendida como portadora do conteúdo – no caso da música, seja ela letrada ou musical.
Fato é que na arte somos todos Vinícius, preferimos as formosas, e que nos desculpem as feias. Se forem belas e inteligentes, tanto melhor.
*Trilha sonora: músicas em que o idioma falado não faz a menor diferença.
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