Shopping, academia, balada e facul. Parece óbvio dizer que só esses quatro lugares não fazem um país – embora o último seja importante para fazê-lo. Pra que um país? Pra oprimir a liberdade do indivíduo? Pra exaltar supremacias beligerantes? Pra escamotear conflitos? Não. No nosso caso, pra se perceber que existe mais gente além das que se vê na balada e na academia. Pra se descobrir porque o shopping e a facul não são só para um tipo de gente. Pra se saber que existem outras realidades para além dos corredores assépticos, dos corpos sarados, da alegria efêmera e do conhecimento legítimo. Pra se entender o quanto é importante acabar com a fome. Pra se entender que há uma instância única acima de cada um, e de todos, chamada Lei. Pra dar uma chance aos que não vivem a rotina dos distintos lugares que abriram esse texto.

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Dentre todos os infinitos e complicadíssimos problemas dessa coisa chamada Brasil, o que me parece mais central, mais urgente, primordial, se refere a isso: não somos um país, na verdade. Não há, de um modo geral, uma sensação fundamental chamada pertencimento. Àqueles quatro lugares citados inicialmente, somam-se outros que comprovariam a tese: Disney, Miami, Paris, Londres. Não há uma pesquisa formal nesse sentido, até porque é muito provável que nossa hipocrisia não permitiria o resultado que projeto, mas, seguramente, entre os sonhos do brasileiro médio (e dele para cima) figura o de não ser brasileiro. Não há, nem nunca houve, um projeto de nação capaz de envolver todo o conjunto da sociedade, aqui. Por quê? Porque essa terra sempre teve donos, cujo poder sempre foi extraordinário, e cujos interesses, irrevogavelmente mesquinhos. Porque esse lugar foi configurado a partir da hierarquização social e racial das populações que moravam e vieram a morar aqui. Índios, selvagens a desaparecerem em nome do progresso. Negros, primeiro como ferramentas, depois invisíveis. Mestiços, se puderem se passar por brancos, ótimo, senão, estarão entregues a toda sorte de marginalização. Brancos? Bem…

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Quando o Estado brasileiro, ao final do século XIX, achou que era preciso empreender um esforço de modernização nacional, partiu do princípio que país próspero e rico era país europeu e, consequentemente, branco. Um dos pontos fulcrais da política pública brasileira nesse momento de arranjo geral foi promover um processo de embranquecimento em certas áreas do território nacional, fundado na franca imigração de populações miseráveis que sobravam na Europa e que, de acordo com os planos, deveriam conformar a futura classe média daqui. Ora, essa gente veio e, em boa parte dos casos, como em São Paulo, para ocupar o lugar de trabalho dos negros, então escravos ou ex-escravos. A partir daí a história é bem conhecida, porque é, basicamente, a mesma até hoje: as oportunidades foram sendo destinadas aos brancos. Aos negros, as margens, os morros, as periferias, o longe daqui.

E quando o poder público ousou reformar – apenas reformar – essa ordem social, ele caiu, foi trocado, abjurado. Corrupção! Comunismo! – bradou civicamente a Avenida Paulista, em um daqueles raríssimos momentos em que ao menos se finge que se é brasileiro, para que o outro não o seja. Não andam de ônibus de jeito nenhum, não trocam uma palavra com o porteiro, acham um abuso os direitos das domésticas, acreditam que a seleção brasileira é a cristalização do fracasso nacional, mas vestem a camisa verde-amarela e reivindicam falar em nome do país. Mudaram o governo e no lugar da presidente “corrupta” e “comunista”, botaram aqueles que talvez sejam os maiores estelionatários da história política republicana. Se está muito claro que o problema não era a corrupção… Crise? Quando esse país não esteve em crise?

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Bem, tornou-se lugar comum falar da ojeriza à recente ascensão social experimentada parte das camadas subalternas, do ressentimento em relação ao pobre mestiço no shopping ou ao negro pobre na universidade. Lugar comum? Não mais. Chega. É preciso resgatar a exclusividade, porque é da busca pelo privilégio que (NÃO) se construiu esse país. Sim, e retirem os direitos trabalhistas dessa gentinha, porque aí eles não têm mais dinheiro pra andar pelo meu shopping; e cortem todo tipo de verba pública para a Educação, Saúde e Moradia pra essa gentinha, porque aí a facul volta a ser só pra nós e eles vão voltar para o lugar de onde não deveriam ter saído e eles vão voltar a se lembrar quem são e vão voltar a se lembrar que não são como nós e nem nunca, nunca, serão.

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Sobre o autor

Professor de História

Professor de História, corinthiano, dependente de literatura, não compartilha receitas gostosinhas no Facebook e seu apartamento – alugado – não tem varanda gourmet. De modo que, por essas e por outras, não é nada, nunca será nada e não pode querer ser nada. Mas, como era de se esperar, por onde vai carrega essa bobagem de ter em si todos os sonhos do mundo.