Nesse especial da SOUL ART em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, trazemos uma seleção de nomes de mulheres que atuaram a partir da década de 60 nas artes visuais. Algumas mais conhecidas que outras, algumas de gerações mais recentes do que outras, mas todas contemporâneas. São desenhistas, pintoras, performers, escultoras, poetisas, fotógrafas, artistas multimídias.
Cinco mulheres artistas, brasileiras, fortes e que expuseram as condições de violência, de machismo e de racismo em seus trabalhos. Muitas delas continuam produzindo até hoje. A seleção foi feita com a ajuda da historiadora de arte contemporânea Talita Trizoli, que estuda mulheres artistas brasileiras desta geração, e procura destacar algumas obras que evidenciam a crítica ao sistema patriarcal.
Anna Maria Maiolino (1942) e a crítica ao trabalho feminino invisível
Nascida na Itália, ela se mudou para Venezuela no pós-guerra e veio para o Brasil em 1960. Foi aqui, a partir de sua identidade brasileira, que ela aprofundou seus estudos nas artes plásticas e desenvolveu sua arte. “Fui uma andarilha”, disse Maiolino em recente reportagem à Ilustrada. “E fui criar um alfabeto, um discurso na arte por não pertencer a nada e a tudo ao mesmo tempo. É uma coisa muito paradoxal. Mas quando os brasileiros querem me ver como uma artista de fora, fico ofendida. Tenho plena consciência que sou um produto da arte brasileira. Todo artista é um antropófago”.
Foi gravadora, pintora, desenhista, escultora e artista multimídia. Explorou a xilogravura, a poesia escrita, a pintura, a performance, a fotografia, a cerâmica e o vídeo. Mas o reconhecimento do seu trabalho em terra nacional demorou um pouco. Sua obra só passou a ser valorizada no Brasil após ser reconhecida pela crítica feminista internacional.
Antes disso, ela era conhecida como ex-mulher de Rubens Gerchman, artista brasileiro com quem casou em 1963 e teve dois filhos. Maiolino passou momentos complicados em que teve que trabalhar como empregada doméstica para sustentar os filhos (já que o ex-marido não a auxiliava financeiramente) e desenvolveu o seu trabalho artístico paralelamente.
Ela participou da Nova Figuração, movimento que se afirmava no início da década de 60 em reação à abstração e tomada de posição frente ao momento político brasileiro e assinou o manifesto “Declaração de Princípios Básicos da Vanguarda” junto com Hélio Oiticica, Antônio Dias, Rubens Gerchman, Lygia Clark, Lygia Pape e outros artistas.
Começando com a xilogravura, ela passa a experimentar filmes e instalações em 1970, sob a ditadura. Na década seguinte, se volta à pintura e nos anos 1990 passa a trabalhar com cerâmica.
Um dos seus trabalhos mais emblemáticos deste último período 1990 é Rolinhos na Horizontal. Nele, ela produziu vários rolos pequenos de cerâmica e os dispôs em ambiente domésticos (sobre camas, cozinha, mesas) nas exposições em que era convidada a participar.
Esse trabalho evidencia o movimento repetitivo da manufatura de macarrão desempenhado pelas mulheres de sua família italiana e o material escolhido (argila) indica a memória e a ancestralidade. É um trabalho provocativo que, de acordo com Trizoli, “dá potência ao trabalho feminino que é invisibilizado, e que vai se espalhando como erva daninha”.
Sua obra acaba de ganhar retrospectiva no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles.
Rosana Paulino (1967) e a arte militante negra
A paulistana da Freguesia do Ó é artista plástica com bacharelado e doutorado pela Universidade de São Paulo e uma das primeiras a despontar no movimento negro. Desde o começo, entendeu o lugar de exceção que ocupava dentro de uma instituição branca e elitista e fez de seu trabalho um lugar de militância.
Conseguiu entender o circuito e se articular dentro dele, atuando, inclusive, como agente facilitadora de artistas negros. E fez tudo isso, sem nunca perder de vista sua potência poética. Suas obras têm como temas o racismo estrutural do Brasil, os resquícios da escravidão, os padrões de beleza feminino e, principalmente, da condição da mulher negra na sociedade.
Diferentemente de Maiolino, que trabalha numa chave mais psicanalítica, do inconsciente e do trauma, Rosana tece um trabalho pautado na consciência de gênero, raça e classe.
Em um de suas séries mais conhecidas, Os Bastidores, ela imprimiu fotografias de mulheres de sua família em um tecido branco colocado em bastidores, e bordou grosseiramente com linha preta por cima de suas bocas, remetendo a objetos de tortura e submissão utilizados contra os escravos, e também ao segredo guardado dentro do universo doméstico. São olhos que não podem ver, boca que não pode falar, nem gritar.
A costura (que aprendeu desde cedo com sua mãe) se coloca como um elemento que questiona essa violência e opressão, ao mesmo tempo que emenda o tempo à memória. Sobre essa série, a artista diz:
“Tocaram-me sempre as questões referentes à minha condição de mulher e negra. Olhar no espelho e me localizar em um mundo que muitas vezes se mostra preconceituoso e hostil é um desafio diário. Aceitar as regras impostas por um padrão de beleza ou de comportamento que traz muito de preconceito, velado ou não, ou discutir esses padrões, eis a questão. Dentro desse pensar, faz parte do meu fazer artístico apropriar-me de objetos do cotidiano ou elementos pouco valorizados para produzir meus trabalhos. Objetos banais, sem importância. Utilizar-me de objetos do domínio quase exclusivo das mulheres. Utilizar-me de tecidos e linhas. Linhas que modificam o sentido, costurando novos significados, transformando um objeto banal, ridículo, alterando-o, tornando-o um elemento de violência, de repressão. O fio que torce, puxa, modifica o formato do rosto, produzindo bocas que não gritam, dando nós na garganta. Olhos costurados, fechados para o mundo e, principalmente, para sua condição no mundo.”
Márcia X (1959 – 2005), perseguida e censurada
De uma geração mais recente, a artista plástica Márcia Pinheiro (nome que utilizava na época) iniciou o seu trabalho performático nos anos 1980. Foi cinco anos depois, que passou a usar o X em seu nome, devido à repercussão de uma performance que fez com o seu primeiro marido Alex Hamburguer na Bienal do Livro.
Vestida com plástico transparente com manchas vermelhas, sem nada por baixo, ela se despiu até ficar nua. “Foi um problema com a polícia, chegaram a apontar uma arma para a gente.”, contou Alex Hamburguer em reportagem à Folha. A reação da estilista carioca homônima Márcia Pinheiro fez com que a artista adotasse o nome Márcia X.
Ela explorou a potência do corpo grosseiro e desenvolveu trabalho polêmicos abordando sexualidade, erotismo, consumo, valores sociais e religiosos, discutindo não só questões estéticas mas também éticas e políticas. Talvez por isso sua obra fosse rejeitada pelo mercado.
Em 1990, ela passou a incorporar objetos. Em 2000, Márcia X. realizou a obra Desenhando com Terços, na qual usava uma camisola branca e desenha, com 400 terços, figuras de pênis no chão. O público acompanhava o desenvolvimento do trabalho, que durava cerca de três horas. O quadro desta mesma obra, sofreu censura religiosa e foi retirado da exposição da Erótica – Os sentidos na arte, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-RJ), em 2006 (um ano após sua morte).
O conselho diretor do Banco do Brasil, após sofrer reclamações e pressão de deputados e empresários, informou no mesmo dia, por meio de sua assessoria de imprensa, que preferiu retirar a obra e que não teve a intenção de ferir a religião católica ou de atingir a Igreja com a exposição.
A censura foi amplamente criticada por artistas, que chegaram a escrever uma carta-manifesto à direção do espaço e ao ministro da Cultura que, na época, era Gilberto Gil. Ele respondeu publicamente, condenando a atitude do CCBB: “Toda censura é inaceitável (…) O Ministério da Cultura estranha a censura feita à obra de Márcia X, na instalação Erótica, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro. Acreditamos na capacidade de discernimento crítico dos espectadores e do público em geral. Assim como acreditamos que toda tutela na relação entre obra de arte e espectador é inaceitável”, comentou em nota cobre o caso.
Maria do Carmo Secco (1933 – 2013) e o questionamento do casamento
Da mesma geração de Maiolino, a artista era uma das poucas que se declarava feminista. Ela tinha plena consciência da dificuldade que tinha de ser mulher artista nesse circuito. Do assédio e das situações de violência”, conta Trizoli.
Teve uma atuação publicamente marcada como professora em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Entre os lugares em que lecionou está a Escola de Artes Visuais do Parque Lage/RJ), mas também era pintora e desenhista. Quando morou em Belo Horizonte, teve uma parceira amorosa e criativa com o Dileny Campos, que era alguns anos mais novo do que ela.
Em seu trabalho, fez releitura dos preceitos concretistas e tinha uma interesse grande pela um espacialidade doméstica e memória. Existe um trabalho seu de 1968 muito potente, em que trabalha arranjos de imagens de fotografias de casamento. Primeiramente, ela enaltece essa instituição e, aos poucos, vai dando indícios da destruição desse imagética romântica. “Retratos de um álbum de casamento” é uma narrativa formada por cores artificiais, que a partir de sua narrativa com a construção de cinco quadros reivindica um discurso militante e feminista. Secco elege temas da intimidade feminina e se aproxima da linguagem gráfica, dos campos de cor chapados e recortados das histórias em quadrinhos e ainda se destaca ao agregar materiais ao plano pictórico como auto-adesivos metálicos.
A artista faleceu em 2013 e agora sua família começou um trabalho de catalogação de suas obras. Esperamos que logo possamos ter mais contato com seu trabalho e seu ponto de vista.
Santarosa Barreto (1986) e o lugar da mulher na linguagem
A mais jovem desta seleção, Santarosa Barreto é paulistana graduada em Artes Plásticas pela FAAP. Ela trabalha principalmente com instalação, objeto e fotografia, e é completamente comprometida com a causa feminista. Seu trabalho é pautado pela coerência com a causa e ela busca trazer referências de seus estudos. Um de seus temas mais comuns é o lugar da mulher na linguagem.
Em sua residência em Paris, questionou a imagem da mulher brasileira no exterior: a da puta. É nessa obra que materializa, de modo mais conceitual, o que é a experiência da mulher jovem, branca, no exterior. “Sabe quando alguém de fora diz: ‘adoro brasileira!’ e a gente dá aquele sorriso amarelo?”, evoca Trizoli. Na verdade, o pano de fundo por trás dessa frase cai no machismo e sexualização do corpo feminino.
Um de seus últimos trabalhos feito com neon coloca frases de conteúdos de assédios, mescladas com frases das feministas Simone de Beauvoir e Angela Davis, como se fossem anúncios. Trata-se de um trabalho de paródia, que faz uma revisão da arte feminista americana.
Para conferir algumas de suas obras e questionamentos, siga-a no Instagram.
Ainda que hoje muitas barreiras tenham sido vencidas e as artistas mulheres venham ganhando mais visibilidade, elas ainda são minorias nos museus e nos livros de história. A cultura patriarcal e machista as excluiu desses espaços.
Resta a nós e aos trabalhos de revisão de pesquisadoras feministas trazermos a memória essas grandes artistas apagadas e seguirmos lutando por igualdade de condições para as novas artistas que despontam.
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