“Foi um galho que caiu na estrada. Eu estava em cima da árvore podando os galhos. Um deles caiu, impedindo a passagem. Rua particular, só cabia um carro por vez… Antes que eu conseguisse descer, um automóvel desses pequenos, populares, vinha se aproximando. Parou e desceu dele um rapaz, não me lembro bem do rosto, era mais um vizinho desconhecido, mas sorria com uma verdade no olhar!… Eu cheguei a pedir desculpas por atrapalhar, mas ele… sorriu. Com tanta generosidade! Jogou o galho dentro do meu quintal. Eu voltei a me desculpar… Ele parecia surpreso com minha alma desarmada. Como dizemos tanto sem falar!…”
– Está tudo bem com você? Ei, você está bem?
Não entendia por que ele gritava tanto. Parecia tão perto. Chegou a pensar que não devia mesmo responder. De repente, parece que o tempo havia parado. E ele só conseguia sentir aquele asfalto morno pressionando-lhe a face. A mão bem perto do rosto. No rádio, tocava uma playlist que abafava o borburinho de fora. O carro todo revirado, mas ele mal conseguia se entender ali. Tudo tinha acontecido rápido demais…
– Você consegue pegar minha mão? Não?…
A sua frente uma mão morena, bem diante do rosto, dedos curtos, unhas roídas buscando no ar outra mão, adormecida e totalmente presa,….
– Tudo bem. Você consegue falar?… Só para saber como você está?
– Eu não sei!… foi o máximo que conseguiu.
– Ele respondeu! Ele tá vivo!!!!
Do lado de fora chegou a ouvir aplausos e gritaria. Era possível escutar alguns dizerem que era um milagre. Como alguém teria sobrevivido àquilo….
– Chi… ch… pessoal. Silêncio, por favor. Precisamos ouvir… ôh, tira essa gente daqui, por favor…
Havia muitas luzes. Ambulâncias, resgate… não fazia muito sentido. Ele ali, quando devia estar no trabalho. Mas, talvez, não. Aquele asfalto morno no seu rosto não lhe dizia da manhã, mas de um final de tarde, depois de o sol já ter arrefecido nosso corpo, nosso espírito…
“Minha mulher disse que tinha sonhado comigo nesta noite. Era um sonho bom. Ela me dava uma vasilha grade e eu saía no quintal para pegar amoras… Eram amoras grandes e suculentas. E mornas. Pintando as mãos, quando tocadas…”
– Ei, irmão. Meu amigo, vai ficar tudo bem, tá? Não se preocupe, ok? Você está sentindo alguma dor?
– Eu… não sei.
– Tudo bem, tudo bem. Olha…
E tudo ia sumindo, sumindo… Pensou em como, em tão pouco tempo, tinha conseguido dizer “eu não sei” tantas vezes. Não era uma coisa que ele dissesse. Era alguém que sabia das coisas. Diretor de uma grande empresa, muito solicitado por todos, admirado. Fez-se um homem de poder, rico… Sempre sabendo de tudo.
“ ‘Você não é rico, Rodrigo! Só tem um emprego bom, mais nada! Pena que não entende isso.’ Foram palavras duras de se ouvir aquelas, cheias de mágoa. Marco Antônio vociferando para mim. O Toninho era amigo de infância, dormia no chão da casa dele, quando marcava de assistir a filmes de terror na casa dele… Como era mesmo o nome daquele ator?… Peter Cushing?… Mas eu não podia continuar amigo do Toninho! A vida andou, ele não fazia mais parte do meu círculo…”
Mas pior do que aquelas lembranças involuntárias era mesmo aquele asfalto, aquele chão… morno. Insuportavelmente morno. Devia esfriar, podia esquentar, mas aquela inalteração, aquela mesmice eterna, torturante!…
– Nós já vamos serrar as ferragens, tá? Amigão, não dorme, não dorm… porq… …
“Como será essa pessoa que fica falando comigo sem parar? Tomara que seja crente como eu. Deus me livre de ser um ateu, não gosto dos ateus, eles sabem que estão errados e continuam errando. E se for um católico adorador de imagens? Cristo, e se for uma desses desgraçados dessas religiões da magia, pederastas de turbantes que sacrificam animais, pessoas… Um macumbeiro?! Ah, Deus não faria isso comigo!…”
Gostar de pessoas não era o seu forte. Detestava, simplesmente detestava, aquelas pessoas muito sentimentais. Não sabia gostar. Nem elogiar… nunca soube. Não aprendeu dos pais, nem de ninguém. Não soube ser leal, nem amigo, nem humano, mas parecia tudo isso. A vida inteira falando de coisas sagradas, estudando, estudando, falando do céu, enquanto se escondia nos círculos do poder. Um farsante, um hipócrita que foi jogando para debaixo do tapete suas incompetências.
E o asfalto morno, sempre morno, marcando-lhe a face. Talvez para sempre. Sempre?…
– Os policiais já estão conseguindo e… só mais um instant… Olh…? …
“Também não gosto de policiais… ficar devendo favor para essa gente?!… Esse cheiro,.. será?… será que eu me urinei? Como vou sair daqui assim? Sem dignidade. O que vão pensar, o que vão dizer?… Também não pode ser ninguém de esquerda. Já pensou? Um desses petistas! Deus me livre. Deve ser um crente. E há de ser uma pessoa razoável como eu. Alguém sem partido. Uma pessoa boa que sabe o que é melhor para as pessoas, para o país e para a humanidade. Ele me chamou de irmão. Claro, é uma pessoa… superior.”
– Só mais um instant… Olh…? …
“E esse gosto na boca,… sangue. Sim, é sangue! A coisa deve estar ficando bem feia agora. Já vi isso nos filmes. Quando a pessoa vomita sangue é hemorragia interna. Preciso avisar que eu tenho um plano bom, se não vão me levar para qualquer lugar…Mas é claro que eu não vou morrer aqui. E assim. Engraçado, eu nunca considerei o fato de morrer. Mas que bobagem eu não vou morrer. Além do mais, Deus tinha falado comigo na vigília, na fogueira santa dos empresários. Foi nesta semana, inclusive. Claro que eu não vou morrer!…”
Viu ainda as pessoas. Mais aplausos. Procurou a pessoa com quem havia falado naquele tempo todo. Queria agradecer, fosse quem fosse, talvez… pagaria. Daria um bom dinheiro. Todos têm o seu preço
– Um… dois… três! Tuff!… Tuff!…
– …
– Mais uma vez.
– Não adianta. Nós o perdemos…. Feche os olhos dele.
– Parecia um bom homem.
– É, parecia… parecia.
O rosto ainda estava morno. O que aumenta a temperatura na vida da gente são as pessoas, sempre elas. Somente elas! As coisas todas daqui… só nos deixam… mornos.
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