Conto: Robson Alkmim | Ilustração: Filipe Rocha
Era mais um dia normal de trabalho. Eu havia chegado no horário marcado, bem cedo. O local, que eu não conhecia, me agradou, tinha um ar perfumado.
Logo fui conduzida por uma atendente de dentes salientes e um sorriso fácil, que me deu algumas instruções, irrelevantes para mim, porque tenho experiência na profissão.
Entramos numa sala iluminada, a moça me pediu para que eu esperasse sentada num sofá vermelho e que rapidamente eu seria preparada. Dela, pude notar um olhar, mirando meu rosto, com ares de preocupação.
Enquanto aguardava, observando as fotos penduradas nas paredes, eu espirrei. Nem muito alto, nem muito baixo, mas o suficiente para me colocar em alerta caso alguém tivesse reparado.
Na noite anterior, e até aquele momento, eu sofria duma persistente dor de cabeça. Um resfriado premeditado, que nem quatro aspirinas resolveram. Já me acontecera antes, e tive trabalhos cancelados ou onde eu mesma nem me arrisquei a botar um nariz vermelhaço em exposição.
Procurei um lenço de papel na bolsa, mas a caixinha estava vazia. Tive que procurar um banheiro. Entrei numa porta e, uau!, era um banheiro.
Peguei um papel higiênico e assoei o nariz. Olhei para o espelho. Eu tinha um bom aspecto, apesar de ter tido uma noite de pouco sono. O que me chamou a atenção foi o nariz, bem na ponta, um vermelhinho que eu sabia que ficaria maior em questão de minutos. Peguei um pó na bolsa e passei no nariz para disfarçar. Ficou razoável, serviu.
Ouvi alguns passos próximo à porta e rapidamente estava do lado de fora. Alguém me procurava.
Era um homem alto e com longos cabelos negros lambidos. Vestia uma jaqueta de couro que reluzia a cada lâmpada que o atingia. Com gestos suaves e seguros me indicou que deveria segui-lo.
Entramos numa outra sala, cheia de espelhos. Tive medo de que ele reparasse no meu nariz, por isso eu meio que o escondia sobre minha mão. Eu parecia uma menininha tímida.
Ele me pediu para sentar numa cadeira. Logo começou seu trabalho em meu rosto. Ele não me elogiou, mas seu olhar era atento aos detalhes, o que pude reparar pela rapidez com que concluiu sua tarefa. Fiquei aliviada, pois meu nariz havia recebido mais uma camada de pó, o que me deixou como uma boneca de cera diante do espelho.
Outra moça apareceu. Esta bem magra e baixa, vestindo uma calça laranja bem justa, e com o olhar altivo. Eu sou bem acostumada a esse tipo de olhar nesta profissão. Ela me entregou algumas roupas e eu fui me trocar, atrás de um biombo.
As roupas eram simples, vestidos floridos, sem extravagância.
Meu nariz começou a coçar e eu o tocava com a ponta dos dedos, uma estratégia que meu pai me ensinara mas que não era infalível. Segurei o espirro como pude, abafado pela roupa que carregava nas mãos. Funguei, torcendo para que aquilo não virasse um rio.
Saí de trás do biombo e olhei para um espelho, tudo bem. A moça veio conferir como eu estava vestida, tudo bem.
Tive a impressão de que esse trabalho não chegaria ao fim.
Fui encaminhada pela moça para um estúdio com um grande fundo branco, bem iluminado como deve ser. Um homem de cabelos cinzas apareceu e me pediu para que ficasse em minha posição diante do branco infinito. Deu-me roucas instruções. Ele parecia de mau humor, na verdade, péssimo, pois ele pouco olhou para meu rosto.
Mirou-me seu aparelho e começou a clicar, enquanto eu fazia poses e olhares manjados.
Num rápido intervalo troquei de roupa. Minha cabeça martelava, senti uma forte tontura em que quase derrubei o biombo. Pedi para ir ao banheiro, a moça e o homem trocaram olhares e depois dirigiram os mesmos em minha direção. O rapaz de cabelos lambidos coçava a testa. Senti todas as farpas entrando em meu ser. Mesmo assim, concederam o meu desejo.
Fiquei uns dez minutos no banheiro. Muito tonta. Mas não poderia desistir. Era um trabalho bem rentável. Imaginei que, com o dinheiro ganho, poderia viajar para Nova York. Não seria um resfriado que me derrubaria novamente. Derrubaria… eis o problema.
Voltei para o estúdio. A moça disse que havia batido na porta, eu jurei que não ouvira coisa alguma. Se ela estava nervosa, imaginem o homem. Ele estava fumando um cigarro à beira de uma janela e, ao ouvir minha voz, virou-se bruscamente, atirando cigarro na rua e fechando a janela numa pancada.
A partir daí, decidi não fazer cara de coitada. Aprumei a roupa, ergui a cabeça e caminhei suavemente, muito segura de que tudo daria errado. O que não fazemos para disfarçar um colapso, não?
Reiniciada a sessão, muito silêncio, a não ser do meu corpo se mexendo, mexendo, mexendo, até que senti outra tontura, e todo o brilho ao meu redor desapareceu.
Eu caminhava pela Times Square vazia. O ar matutino bem gelado. Eu usava o mesmo vestido, fino, florido, de verão. Eu estava descalça. Minha pele, ainda mais branca, rachava e doía. Eu espirrava a cada dez passos. Agonizava e morria de vergonha de ser descoberta. Comecei a correr, meus pés patinavam. Uma neve muito fina se lançou das nuvens. Eu não tinha qualquer senso de direção. Ouvi uma voz distante. Olhei, alguém corria em minha direção. Ao se aproximar rapidamente, vi que era o homem de cabelos cinzas, fumando seu cigarro e gesticulando horrores. Atrás dele vinha o rapaz de cabelo lambido, rebolando e com cara de choro, mais atrás, a moça vermelha de ódio, seguida por uma porra de um tripé que sustentava a máquina. Todos agitados! Havia um sofá vermelho no meio da avenida, corri até ele e me encolhi, espirrando, cobrindo o nariz para que ninguém percebesse meu resfriado que, nesse momento, ensopava minha roupa entre catarro e lágrimas.
O que me pareceu pouco tempo depois, abri os olhos. Era vigiada pela atendente, ela segurava um copo de água. Perguntou se eu estava bem.
Eu estava deitada no sofá vermelho. Não sentia bem o meu corpo. Passei a mão pelo rosto, sentei-me e aceitei o copo, bebendo toda a água. A moça disse que eu estava pegando fogo, e que deveria ir para um hospital. Olhei em volta e vi minhas roupas e a bolsa sobre o sofá, eu ainda usava o vestido. Nada das outras pessoas, imaginei o quanto me odiaram.
Fiquei preocupada, tive certeza de que havia perdido o dinheiro. Até que a moça, sorridente, disse que, tudo bem! Tudo bem? Sim, tudo bem, ela reiterou. Entendi bulhufas.
Troquei de roupa e fui embora. No hospital, após quatro horas, tomei uma injeção e voltei para casa, quando recebi a ligação de meu agente, dizendo que, tudo bem, meu pagamento sairia naquele mês pelo ótimo trabalho feito.
A boa é que fui para Nova York, tudo super ensolarado e animado. Foram as minhas melhores férias, ao lado do médico gato que conheci no hospital.
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