Paramos o carro no viaduto entre a rua Santo Antônio e a Augusta, como de costume. Olhei para baixo da ponte, onde mendigos dormiam totalmente envoltos em cobertores. Do outro lado do viaduto se via o antigo prédio do Banespa, a bandeira do estado de São Paulo tremulava imponente em seu topo. Subíamos em direção à Augusta enquanto minha cabeça tentava se desvencilhar dos profundos grilos da minha alma, e para isso buscava alguma espécie de conexão ancestral, ou apenas por aquele momento de transcendência noturna. Quanto ao Fernando, não lembro em que trip ele estava, mas posso afirmar que ele é sempre acessível e pronto pra tudo – ainda mais na iminência de um baque qualquer.
Escolhemos a Augusta porque é a melhor rua do mundo: me ligo na imprevisibilidade da tradicional rua paulistana. Dias atrás estávamos numa boca de porco qualquer onde tocava uma banda curtida na tradição do blues quando Marcelo Gross, guitarrista da banda Cachorro Grande, que estava no bar de bobeira, sacou sua guitarra e começou a improvisar em cima de uma música dos Stones levada pela banda da casa. O resultado foi uma situação de êxtase coletivo.
Enquanto subíamos em direção à melhor rua do mundo e eu tentava me conectar, começamos a ouvir um som que aumentava de intensidade ao passo que nos aproximávamos da rua. Ao chegar à Augusta o som já era bastante alto, mas não podíamos ver sua origem, apenas um estranho movimento de pessoas fantasiadas. A imprevisibilidade da noite tomava sua forma. Seguimos o barulho e quando atravessamos a rua olhei para o movimento que seguia para baixo da praça Roosevelt (lugar conhecido como “buraco do Minhocão”). Fui surpreendido por cerca de cinquenta pessoas que pulavam coloridas & seminuas ao som que emanava de uma pequena caixa. Perplexo, observei aqueles malucos que conferiam a necessária selvageria da noite sagrada. Compramos cervejas e seguimos rumo à bagunça.
Nos encaminhávamos para dentro do buraco quando vi Marcelo Gross andando em direção não do buraco, mas da praça Roosevelt morro acima. Seu perfil de jaqueta jeans e boina preta me deu a sensação de que o surrado tapete da Augusta se desenrolava sob nossos pés. Quanto mais nos aproximávamos do buraco, mais aquelas figuras seminuas e coloridas tomavam corpo: homens barbudos seminus dançavam com suas gatas coloridas ao som que ia de Elis Regina a temas afros. É claro que aquilo era um bloquinho de carnaval, mas não lembrava em nada aqueles que eu vira no Rio de Janeiro, porque este era mais perigoso e livre. Uma alcateia que resolveu se esquentar na chuvosa noite de São Paulo, ocupando o espaço público e os olhares de quem, como eu, assistia com perplexa alegria uma selvageria jovem e viva.
Voltávamos ao bar para outra rodada quando um casal que estava de bobeira ao lado do buraco nos abordou. Eram um menino e uma menina bem jovens. “Tão curtindo o buraco?”, perguntaram. E logo em seguida nos explicaram seu jeito simples de abordarem desconhecidos que lhes parecem interessantes. Me liguei nisso. Então a menina me disse “deixa eu falar? Até que você é bonitinho”. Resolvemos curtir um pouco com o casal e ver o que a noite nos reservava. Olhei para o Fe e disse “ainda não consegui me conectar, rapaz”. Ele me lançou um olhar estranho e louco e me disse que o bar seria minha salvação.
Trocamos uma ideia a caminho do bar e na volta para o buraco nós quatro já havíamos nos entendido. De maneira que o garotão não perdeu tempo e como tinha sacado que Fe e eu não cairíamos nos seus encantos, ele caiu nos braços de milhares de homens barbudos seminus. Sua amiga não teve escolha a não ser ficar com a gente fazendo sala. Eu já estava me sentindo um pouco entediado quando uma alternativa excêntrica passou na minha frente demonstrando uma atitude alternativa dançante e a pobre gata da Penha jamais foi vista. Acompanhei a alternativa excêntrica na dança com meu gesto tímido ousado. Foi o suficiente para ela me dar um beijo e assim livrar-se de mim. Imediatamente voltou para os lábios de suas amigas, que lhe pareciam mais saborosos.
A essa altura uma leve conexão começou a brotar. Fe e eu dropávamos aquele buraco sacando todos os seus tipos, que agora ganhara alguns expectadores: velhos, pais com suas crias, mendigos, skatistas, maridos que acabaram de comer sua pizza e foram comprar cigarro na esquina quando se depararam com jovens desinibidos e resolveram parar um pouco e assistir ao gracejo.
Isso foi em janeiro e o Buraco da Minhoca – nome do bloco que na ocasião ouvi de orelhada e que depois confirmei – ainda não havia sido legalizado pela prefeitura e por isso não era tão divulgado, o que lhe conferia um ar de originalidade sem precedentes. Qualquer um que passasse por ali naquela hora ficaria surpreso com o bloquinho fora de época que alguns descolados resolveram organizar para se divertirem, se amarem, para dançarem sem dinheiro e sem motivo no meio da rua. Afinal qual a finalidade da rua se não um local de diversão gratuita num sábado modorrento?
A promessa de imprevisibilidade da Augusta se cumpria. Os curiosos expectadores deixaram o pequeno grupo de foliões, que resolveu se aventurar madrugada adentro. A conexão se estabelecera e então começamos a dançar freneticamente numa curiosa roda. Por algum motivo (provavelmente o horário) as caixas de som foram embora e o que restou foi um cara e seu tambor. O negro gato usava óculos escuros e camisa amarrada na cabeça como turbante, batucava enquanto concordávamos com tudo. Tratamos de valorizar aquele batuque e começamos a dançar a seu lado enquanto a roda se formava. Fernando só dançava e curtia o estado em que ficamos certos dias. Nesses dias danço da mesma forma que escrevo, ou falo, ou vivo: esforço-me para extrair até a última gota do meu suco. Me exauri e apenas acompanhei a caminhada dos seguidores do batuque buraco adentro, no baque lento de heroína que possuo secretamente em meu interior.
Um cara que estava ao meu lado deu uma long neck para o batuqueiro sem mais. “Você é brother”, disse eu. “Todos nós somos”, me disse, dando um beijo em meu rosto. Acreditei nisso e assim procurei pelo brother que a vida me deu de presente. E lá estava o Fe curtindo seu baque de maneira solitária, cool e sorridente, como só ele sabe fazer. Ao mesmo tempo uma diaba loira que rebolava captou minha atenção. “Você rebola como uma baiana”, disse enquanto me apaixonava. Ela sorriu e agradeceu. Era uma loira de beleza clássica. E seios grandes cuja blusa de tecido fino revelava os bicos duros. Coloquei-me estrategicamente de maneira que quando andou veio em minha direção. “Quer um gole de cerveja?”. Ela tomou. “Como você chama?”. “X” (não me lembro). “O que você faz?”, perguntei debilmente. Ela fazia alguma coisa na Belas Artes. E é claro que depois do questionário careta ela perdeu o interesse e voltou para seus amigos.
Aquilo me deu uma broxada, de modo que percebi que já estava cansado e aquela dança de batuque não fazia mais sentido. O Fe também já sinalizava sua decadência. Resolvemos tomar um lanche no Estadão antes de voltarmos pra casa. Fernando ouviu pacientemente meu choramingo enquanto caminhávamos na amena noite do centro. Mas o que se há de fazer diante de uma menina de cabelos amarelos e olhos de vivacidade verdejante, a não ser gaguejar e contemplar sua beleza? Aceitei. “O que vai querer garotinho? A coxinha tá fresquinha, saiu agora garotinho”, disse Chico, o simpático atendente do Estadão. A noite de São Paulo tem sempre o frescor correto para nos oferecer.
Fotos: Reprodução/Buraco da Minhoca
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