A vitória é da mesma forma para aqueles que sempre estiveram mais distantes do ouro?
Joanna Maranhão não tem vinte e uma medalhas de ouro olímpicas. No entanto, além das medalhas comuns que coleciona ao longo da carreira, Joanna Maranhão tem outro tipo de medalha de ouro. É um tipo de medalha que nesse nosso mundo não costuma valer muito, porém: é a vitória que não sobe no alto de um pódio, nem se percebe num cartão de crédito; é a vitória como ser humano, literalmente como ser humano. Atleta das piscinas desde a infância, ela foi abusada sexualmente pelo próprio treinador, quando ainda era criança. Mas permaneceu no esporte, porque as águas eram a sua vida. Que me desculpe a Televisão, mas uma mulher como Joanna Maranhão é (ou deveria ser, se a dignidade valesse mais do que o desempenho) muito mais ídolo e herói e mito do que o gringo que sempre recebeu absolutamente todas as pré-condições para ser um campeão e que tem – uau, nossa, que semideus – as tais vinte e uma medalhas de ouro (talvez até mais do que isso, agora que você está lendo esse texto).
Não estou aqui querendo desmerecer a qualidade de Michael Phelps como atleta, mas a constrangedora histeria em torno do nadador norte-americano, reproduzindo um procedimento totalmente Made in USA, além de colonialismo mal disfarçado, é um pouco simplista e um tanto hipócrita. Porque o esporte seria algo muito mais especial e humano se a mídia tivesse a decência de contar outras histórias com a mesma vontade que trata das ladainhas dos batedores de recordes que tiveram tudo na vida pra vencer. É fácil de notar: o caminho entre o nada e o tudo é bem mais longo do que entre o tudo e o tudo e mais um pouco. A grande contradição da vitória repousa no fato de se celebrar muito mais os feitos de quem já estava no pódio.
Assim como Joanna Maranhão, o esporte oferece dezenas de exemplos de superação assombrosa. Que fique claro que não me refiro à superação das barreiras do próprio corpo, ou dos aparentes limites da modalidade, mas a transcender a realidade, a revolucionar a própria vida, a fazer parte de outro universo. Vejamos o caso da judoca Rafaela Silva. A primeira medalha de ouro do Brasil em uma Olimpíada disputada em casa veio de uma mulher negra da periferia que, ao invés de bala da polícia, recebeu do Estado o acesso a um programa social ligado à prática esportiva. Por uma noite todos a aplaudimos. No dia seguinte, já não se falava mais nisso, talvez porque outras Rafaelas Silvas, anonimamente, continuavam a lutar como se não tivessem o direito à vitória.
Podemos falar de esportes coletivos, também. Foi emblemático a tv trocando a transmissão do futebol feminino brasileiro por uma prova de natação em que Michael Phelps era o favorito. Aqui, cabe questionar, ainda: em que, exatamente, Marta é menor do que Neymar? Ela tem cinco bolas de ouro, prêmio máximo da FIFA destinado a um jogador de futebol. E ele, tem quantas? Nenhuma. Mas ele tem, sempre teve, desde que surgiu como profissional, uma máquina poderosíssima, que ela não tem e nem nunca teve: a mídia. Ok, falaremos da Marta por esses dias e, assim como Rafaela, será em breve esquecida, porque logo teremos que voltar a falar da última selfie do garoto-propaganda Neymar.
Que fique claro que não se trata aqui, simplesmente, de pleitear espaço maior na tv para o esportista brasileiro, mas de debater quem são os heróis no nosso tempo. Podemos citar situações que não envolvem atletas daqui. Já que tratamos tanto da natação, vamos lembrar de Yusra Mardini. Refugiada, ela fugiu da Síria nadando, depois que o barco em que viajava para a Grécia encalhou. Veio ao Rio para mostrar que está viva, veio para nadar. Não ganhou medalha. E daí? Por que a épica e poética vitória dessa garota é menor do que as cem mil medalhas do semideus Phelps? Porque aprendemos desde cedo que o importante é competir e de alguma forma também aprendemos desde cedo que competir serve para vencer, e que vencer significa derrotar alguém, ser superior aos outros. Enquanto for assim, os verdadeiros heróis não serão heróis por mais do que duas semanas. E enquanto for assim, o pódio chamado mundo não será para todos.
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