“Talvez esse seja o milagre: o universo segue as leis da natureza. Talvez essas leis que regem o universo sejam a definição de ‘deus’.”
(Leonard Mlodinow, físico, escritor e cientista americano, parceiro de Stephen Hawking)
Foi o ruflar de asas que me chamou para a varanda dos fundos. O olhar fixo da cadela para o alto, a atenção completa do gato. Não foi difícil de achar: era uma rolinha. Lá no alto do telhado, pousada naquelas esquinas de caibros e ripas, ela tentava se proteger escondendo-se dos predadores.
Sentindo-se acuada, presa, angustiada, aquele desespero e terror me tomaram também. Começaram as providências: prende-se o gato dentro de casa, afastam-se as cachorras para a pobre ave se salvar. De dentro da sala, pela porta de vidro eu observava seus movimentos. Ela analisava repetidas vezes o território, ia descendo pelas ripas, mas quando estava próxima de se libertar, voltava tudo de novo. Vi aquilo acontecer uma, duas três vezes sem entender o que a impedia de ganhar o céu do quintal e a imensidão das possibilidades que só o céu pode ter.
– Vamos, pode sair daí. Tá vendo? Não tem mais ninguém aqui. Pode ir embora.
Ela não entendia, óbvio. Os bichos não entendem pessoas. A gente só fala por falar, para acreditar que interagimos com as coisas da natureza de forma inexplicável. Minha voz era só paciência e compaixão.
O instinto a impedia, pensei. Além de ter de descer pelo madeiramento, tem essa parte de parede que vai até quase o balcão da varanda… é por isso, concluí, como que a perdoando por não corresponder às minhas expectativas. Coitada, tem muito medo.
Esperei mais um pouco, é justo respeitar o medo dos outros. Mas a verdade é que paciência é coisa que a gente normalmente não tem. E eu queria mesmo era soltar os cachorros e tirar o gato de dentro de casa, antes que ele pensasse que a sala fosse, de fato, sua. Além disso, era domingo, dia de almoço na casa dos sogros, eu tinha certa pressa (como sempre temos).
– Escuta, minha filha, eu não tenho o dia inteiro pra você! Deixa de ser burra, você tem asas. Isso é tudo o que você precisa. Concluí que era burra demais a tal rolinha. Mano, quisera eu ter umas asinhas como ela! Cada vez que me deparasse com problemas, eu iria sumir!
– “Professor, aquela mãe chata está procurando o senhor.”
– Ah, só um minuto. E eu deixaria só umas peninhas no lugar…
Eu já havia considerado a estupidez das passarinhas uma vez, quando me contaram uma lenda sobre o João-de-barro. Dizem que se o passarinho descobre que a companheira o traiu, ele a prende dentro da casinha e ela morre sufocada…
Cristo, que bicho idiota! Imagina a cena, o diálogo. (…)
– Então você me traiu, sua sapeca! Vou te prender aqui nessa casinha e você pagará com a vida por ter jogado meu nome na lama!
– Oh, não. Por favor, João. Não me mate… e a ignóbil não voa?!!! Mano, vai embora, você tem asas, amiga. Voa! E vida que segue… (…)
Aquela rolinha devia ser prima das Joanas-de-barro esquecidas de voar.
– Vamos, pai. Deixa a rolinha aí, depois ela sai sozinha.
– Isso é que não. Os bichos vão comê-la, o que não é certo. E não era mesmo. Atualmente cachorros e os gatos já têm ração. Que gente esganada é essa raça dos pets! Essa rolinha depende de mim para sobreviver! (Ah, como dizemos mentiras revestidas com a dignidade da verdade! E acreditamos nessa superioridade!…)
Nosso amigo Eliseu, que mora na floresta, asseveraria com a autoridade dos grandes biólogos: “É a cadeia, Valter!” Mas a segurança dele eu jamais terei. Consegue aceitar que os gaviões surjam no seu quintal e levem um e outro saguizinho!…
Eu morro de dó quando vejo as peninhas de pardais na área. Minha indignação só termina quando olho para a cara do gato dormindo seu sono sem fim, curtindo aquela digestão feliz… só falta me dizer também “É a cadeia, Valter!”
– Vamos, Valter. Não gosto de deixar meus pais esperando!
– Então, tá. Eu vou, mas se houver uma tragédia com essa pobre coitada, a culpa é de vocês! De vocês e dessa cadeia maldita!… acho que só o gato entendeu, porque riu discreto e emendou uma lambida na pata pra disfarçar.
Fomos embora e eu me esqueci. “Só o esquecimento pode nos aproximar da felicidade” (Nietzche)… Entrei correndo em casa, fui para a área, procurei no telhado, busquei pelo gramado, na casa dos cachorros, com o gato… nem sinal da rolinha. No fim da tarde vi um bando delas brincando no chão poeirento daquele verão… todas tão iguais, talvez fosse uma daquelas.
Não precisou da minha ajuda, dispensou meu sentimento cristão e piedoso, meu poder para resolver os problemas alheios. Foi embora e deixou no meu telhado a lição de que eu não vou ter controle sobre tudo. Nunca! nem das menores coisas. Mas entendi que, a despeito disso, eu sempre terei a fé. A certeza de que “apesar de mim”, as coisas vão se resolver com sabedoria: as rolinhas terão o céu que lhes pertence e os filhotes de gavião terão o que comer.
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