Lá fora, a quadra, o espaço, o resto da alegria que o sol deixava sobre a cidade naquele outono comum: ali dentro, sentado naquele banco de madeira antigo, mais uma vez uma criança esperava alguém que, parecia, não viria.
A diretora ainda estava se ambientando, conhecendo a rotina da escola. Deparando-se com uma cena que aparentemente se repetia, perguntou para uma funcionária de cujo nome não se lembrava:
– Quem é aquele menino?
– Ah, é aluno da professora Sueli, o Luizinho.
A cena era incomum e triste. Sentadinho na cadeira de adultos, seus pés balançavam no ar, sem alegria nenhuma. Segurando uma mochila quase nova, de um azul quase feliz, ele era a imagem mais bem acabada do abandono.
– E por que ainda está aqui? A escola está fechando. Ninguém da família vem buscar o menino?
– Coitado, Dona Mara, acho que é até melhor pra ele…
– Como assim!?
Aquela mulher estava de saída, mas a vontade de dizer era incontrolável. Ficasse claro, não gostava de fofoca, mas quem sabe a diretora pudesse salvar aquela criança de tanto sofrimento…
– … parece que é abusado!… Éh, e pelo próprio pai! Disse, chegando-se mais perto. É que a senhora não conhece o pai dele, tá começando agora na escola… E o menininho, judiação, tem todos os indício, como as professora falaro outro dia. Deus me livre, quanta maldade qui ixiste nesse mundo! Como pode, né mesmo?
– Mas como pode ser isso? Ninguém fez nada, ninguém denunciou esse monstro pra polícia?
Ao dizer isso, subitamente, a mulher se lembrou de como estava atrasada e precisava ir. E foi o que fez. Mas não sem antes implorar à diretora que não dissesse a ninguém o que acabara de ouvir. “Afinal, não estava falando mal de ninguém, só queria o bem do menino e…”
– Claro, claro… Até amanhã, então.
Ah, mas aquilo não ficaria assim! Claro que não… Pensou com uma intensidade raivosa, a diretora conhecida na rede por ser uma mulher implacável, de elevada moral. Quis controlar a vaidade, o ego, mas considerou que seria melhor reunir tudo o que era seu para “resolver” aquilo que ninguém ainda tinha conseguido. Pensou que talvez Deus a tivesse enviado ali para salvar aquele menino. Ia investigar. Começando pela própria vítima. Sua formação em Psicologia a autorizava.
– Oi. Você que é o Luizinho?
O menino não falou nada, mas assentiu com a cabeça que sim.
– Tá esperando seu pai?
O mesmo se deu: o silêncio, o sim com a cabeça.
“Todos os indícios, todos os indícios”… A mente da mulher se dividia entre a ternura e o ódio. Demorou-se analisando os cílios longos daquele anjinho, de mãos tão pequeninas, segurando a mochila com temor… Só dividia o mesmo tempo odiando profundamente o pai, quando pensava nas atrocidades que fazia com aquela criança.
– Ah, mas eu acho que tenho uma coisa que você vai gostar muito, Luizinho. Espera aqui que eu já volto, tá?
Foi até sua sala e voltou de lá com um estojo de lápis de cor e uma folha em branco. Acomodou o garoto numa sala de aula vazia e deixou-o desenhando.
– Faz um desenho bem bonito pra mim, tá? “Os indícios” apareceriam naquele desenho. Poderia se constituir numa prova importante. Estava muito atenta acompanhando a confirmação de suas certezas, quando viu o vigia se aproximando. Cuidando para que o garoto não visse, ela se antecipou e foi ao encontro do funcionário.
– O pai do menino, Dona Mara, chegou. Vou levar o garoto até ele.
– Não. Diz pra ele ir pra minha sala. Quero conversar com esse… homem. Ia dizer outra coisa, mas se censurou. A pausa, entretanto, dava a certeza de que “homem” era o que ela não queria dizer.
Chegou antes na sala impecavelmente organizada. Tomou uma água e foi imaginando cada pergunta, cada réplica, cada tréplica… pegaria aquele desgraçado!
– Com licença.
– Entra. Foi ríspida, mas não se importou, mesmo porque, nesse instante tinha se abaixado para pegar um clipe que viu caído perto de sua cadeira, bagunçando todo aquele ambiente de retidão.
Quando se recompôs, diante dela, uma figura inesperada: um homem distinto demais para um crápula. Estava de pé, devia ter 1,70m, magro, barbeado, cabelos bem penteados e um tanto longos, ao estilo argentino, … a roupa era simples, mas muito bem cuidada, limpa. Muito limpa!
– A senhora quer falar comigo?
Achou melhor ir falando tudo. E rápido, para que ele não percebesse que ela havia ficado surpresa… perturbada (?)
– Sim. Sente-se, por favor. O senhor sabe que está atrasado para pegar seu filho. Ele sai às 17h30 e a escola fecha às 18h. Hoje o senhor deu sorte, eu fiquei até mais tarde, porque.. Em dado momento da sua fala, considerou que estivesse sendo dura demais, mas, afinal aquilo era uma escola pública. Era assim que ela falava com todos os pais, mesmo com os que não abusavam dos filhos.
– Me desculpe, isso não deve mais acontecer. Mudei de trabalho, terei mais tempo para o Luiz, precisamos disso.
– O senhor trabalha em quê?
– Desculpe-me, mas isso é relevante?
“Relevante”, os pais dessa escola não dizem essas palavras, não eram articulados… Foi um choque, depois disso a vergonha de ter sido impertinente, a ofensa por ter se sentido afrontada. Afinal era ela quem mandava ali, ela tinha o poder do bem falar.
– Precisamos saber dos nossos alunos, Senhor…?
– Inácio.
– Então, senhor Inácio, precisamos saber dos nossos alunos. Precisamos conhecer a família das nossas crianças… a mãe do Luizinho? Vive com vocês, o senhor é casado? Ela achou estranho ter perguntado aquilo daquele jeito. Na verdade, estava tudo muito estranho naquela cena… não se reconhecia, essa era a verdade. Aquele homem que deveria ser um monstro a incomodava demais. Mas que droga, por que ele não correspondia ao que esperava?
Deteve-se nos olhos dele, então, enquanto esperava a resposta. Os cílios eram longos e o verde intenso não tinha alegria. Nenhuma! Tão iguais aos do menino…buscou, com desespero, alguma coisa feia naquele pai. Talvez as orelhas, as mãos peludas demais… O silêncio pesou demais naquele cômodo e ela concluiu que um homem é perigoso demais quando sabe se calar.
– A mãe dele foi embora…
– Foi embora?
– Sim. Foi embora.
– E não levou o menino com ela? Como uma mãe…
Foi quando ele se levantou. E havia uma dignidade nele. Quando perguntou se havia mais alguma pergunta, ela nem teve tempo de responder, mesmo porque estava tão desconcertada, sem saber o que pensar, sem saber o que dizer…
– Boa noite, então.
– Boa noite… e sentiu um aperto de mão vigoroso e quente. Mão macia de quem sabe salvar pessoas, mulheres, almas cheias de certezas como as dela…
Foi embora atordoada para casa. Não soube dormir, nem se reconhecer dentro do próprio quarto. Sentia-se desprotegida.
Na escola, foi correndo buscar notícias do garoto, do filho daquele pai magnetizante e imoral. Marcaria outra reunião, intensificaria as investigações, falaria com a professora…
– Com licença, professora Sueli. Eu gostaria de falar sobre um aluno seu, o Luizinho. É que…
– Ah, eu acho que ele não vem mais. Os coleguinhas disseram que ele se mudou…
– Ah…
– Por quê?
– Não. Nada…
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