— O senhor é da família?
— Não. Sou só um amigo.
— …
O médico disse mais alguma coisa, mas Ricardo nem ouviu toda a falação. Encostou-se na parede do corredor branco daquele hospital. A partir daquele instante tudo era frio e estranhamente quieto, combinando com o medo jamais sentido. Esperaria. Nilton não tinha família. Não por ali.
Era um daqueles momentos em que a vida da gente vai voltando, voltando… tão exatamente…
Ricardo era um benfeitor. Bom menino, rapaz correto, homem sério da cidade, não era inteligente, mas esforçado, estudioso. Quando decidiu que passaria em um concurso público, ninguém duvidou que conseguiria. Passou com méritos no Banco do Brasil em excelente classificação. Tanto que pôde escolher a agência da pequena cidade em que morava. Formou-se em Matemática, mas não lecionou, que o emprego no banco lhe bastava.
Religioso, era voluntário nos projetos sociais da igreja. Trabalhava assiduamente na recuperação de viciados em álcool e drogas. Embora não fosse um adicto, era filho de um. Foi num desastre de automóvel que perdera toda a família: pai, mãe e irmão mais velho. Ele tinha 16 anos, então. Continuou morando sozinho e sobreviveu no sentido mais literal, por aqueles 20 anos. A experiência trágica fazia dele alguém com certa autoridade para conduzir os trabalhos daquele grupo.
Foi num desses encontros que, um dia, apareceu aquele mendigo que, havia algum tempo, vagava pelas ruas, revirando lixo. O olhar sumido num rosto maltratado que a barba longa escondia. Foi acolhido. Deram-lhe um banho, comida e lhe aconselharam a participar dos encontros do grupo de ajuda. Demorou até que aquele homem de aparência tão sofrida dissesse em uma única frase o que o levara até aquela condição.
— Eu me chamo Newton. E… eu… eu esqueci minha filhinha… no banco do carro…
Não falou mais nada. O olhar parou, e uma lágrima fria cortou-lhe o rosto e preencheu de silêncio todo o espaço. Ninguém ousou perguntar mais nada, a palavra foi circulando entre os participantes, cada um com sua tragédia particular: dor, arrependimento, abandono.
Naquela mesma noite, Ricardo empenhou-se numa pesquisa rápida que lhe deu mais detalhes do episódio envolvendo aquele homem de feições conhecidas. Lembrou-se, então do caso, na época, largamente noticiado na televisão: era um empresário da capital do estado vizinho, depois de deixar a esposa no trabalho, seguiu para o seu próprio e se esqueceu da filhinha de 11 meses no banco traseiro do carro fechado. A criança morreu sufocada e nada mais se comentou. Era essa a história de Newton, nome inventado que não coincidia com a realidade. O resto ele mesmo deduziu.
Ricardo não contou a ninguém. Mas as coincidências e as dimensões de uma cidade tão pequena se encarregavam de aproximar aquelas duas pessoas tão diferentes e tão afins. Sobreviventes na vida, errando pelos dias, cheios de culpa, justamente por não terem morrido também.
Quando souberam que o Ricardinho, como era conhecido, havia levado para dentro da própria casa um mendigo, muito se comentou. A maioria falava da nobreza daquele gesto de caridade; mas outros punham em dúvida a virilidade do rapaz… Tanto mais depois que rompera com a namorada justamente por conta do hóspede maltrapilho. “Dinho, você sabe como é,… as pessoas falam… então é isso: ou eu ou ele”. Claro que ela estava certa, concordou. Só pediu que, ao sair, ela não fizesse tanto barulho: o Tinho havia chegado tarde… devia ter bebido de novo.
Ele não se importava com o falatório. A moça não o interessava, assim como todos os outros. Exceto o “Newtinho”… Era comum sair de madrugada para ir buscar o amigo caído perto da estrada ou em algum boteco da cidade. Sujo, alcoolizado. Recolhia o semelhante e nada lhe dizia que o pudesse culpar mais do que ele próprio já se encarregava de fazer… todos os dias.
Mas não era uma relação unilateral, como, para muitos, podia parecer. Mesmo sem planejar, o andante salvava o bancário da vida desprovida de Belezas e emoções. Lembrou-se da ocasião em que, chegando em casa ouviu o som do violão esquecido no quarto. Aproximou-se, lentamente, sem fazer barulho e se sentou bem perto do artista, como quem toma todo o cuidado para não espantar uma ave canora num galho de árvore… Ao final do concerto, bem dentro da sua casa, iluminada então, extasiado, mal se lembra de ter ouvido que se tratava de uma composição flamenca, cujo autor… Tinho trazia um mundo novo para a cela de Dinho…
Com o tempo a cidade foi se acostumando com os dois. E não associar um ao outro era quase impossível. “Parecem até irmãos!”, ouvia-se. Não era verdade. Eram amigos. Um tipo de amizade que não se vê, que a maior parte das pessoas jamais sentirá. Quase um ano se passara desde que se conheceram, embora parecesse tanto mais…
Agora, ali naquele hospital da cidade vizinha, o tempo parecia enganar da mesma forma. Nem viu que já era noite. Era outro médico que lhe perguntava:
— O Senhor é o quê do paciente Newton?
— Amigo. Só amigo.
— Então,… e foi contando que Tinho havia chegado muito mal, trazido pela ambulância. Costelas quebradas, muitos ferimentos… alguém tinha visto que fora atropelado. O motorista do carro havia fugido, claro.. um mendigo, sem história…
Foi entrando, então, desvencilhando-se dos braços que o tentavam impedir e das vozes dizendo que ele não podia entrar… Chegou ao lado da cama. Ainda tocou a mão do amigo músico… sorriu imperceptivelmente e sussurrou bem perto do ouvido:
— Você não tem culpa.. Não tem…
Era a frase que ele também queria ouvir (que, talvez, todos nós…). Era o melhor presente que poderia lhe dar…
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