Ele trabalha pelas ruas da Avenida Brigadeiro Faria Lima todos os dias. De ônibus em ônibus e pelas calçadas, João Franco, de 28 anos, vende cartões da ONG Mensageiros da Alegria, ou Grupo Teatral Mensageiros da Alegria, fundado em 1995 com o objetivo de criar cenas e ações lúdicas em territórios inusitados como hospitais e instituições de apoio a crianças e idosos.
Com seu típico jaleco branco, camiseta da campanha de doação de sangue, criada por ele, e maquiagem de palhaço, que ele mesmo pinta, João Franco enfrenta ônibus e avenidas para vender seus cartões e divulgar as causas nas quais é envolvido, e são várias, há 11 meses. Mas antes de chegarmos às ruas, devo dizer que acompanhei a preparação de João na sede da ONG.
A sede fica na Rua Conselheiro Crispiniano, próximo ao metrô Anhangabaú. Lá, dentro do escritório da ONG, encontro João, que havia chegado há pouco mais de dez minutos, sentado em uma cadeira próximo a outros funcionários da associação, todos aguardando para se maquiar e sair às ruas. Eram 9h e o dia começava para eles.
Com um pancake na mão, João vai até o banheiro preparar a primeira etapa da maquiagem. Em frente ao espelho, começa: coloca um pouco do pancake na mão e o espalha em seu rosto, que fica instantaneamente branco. Volta para o escritório e pega mais alguns potinhos de tinta que estavam dentro de uma nécessaire em cima da única mesa do cômodo.
João volta ao banheiro com mais alguns potes e pincéis na mão. As tintas são próprias para desenhos faciais. Ele se concentra no desenho: um céu, onde o sol e as nuvens estão localizados acima de suas sobrancelhas. O sol é feito com a própria tampa de um dos potes, quando ele a pincela e pressiona contra seu rosto.
— Eu invento todas as minhas maquiagens. Por enquanto a que eu mais estou fazendo é essa representação do céu, porque todo mundo está elogiando.
A maquiagem só costuma incomodar nos dias quentes, quando dá um pouco de coceira.
— Agora eu acabei acostumando, mas no começo coçava muito. Eu esquecia e passava a mão no rosto, e por causa disso acabava borrando toda a maquiagem.
O desenho leva aproximadamente meia hora para ficar pronto, e com a maquiagem finalizada, João veste um jaleco branco de mangas longas e vai para outra sala, onde pega os cartões para venda. São cerca de cem, com oito modelos diferentes. Todos são contabilizados antes de sairmos.
Na saída do prédio, o relógio marcava 10h, horário em que ele começa o trabalho, quatro vezes por semana. Fomos caminhando até a Avenida Ipiranga para pegar o ônibus que leva à Avenida Brigadeiro Faria Lima, onde começa o trabalho.
João, que também é ator, nasceu e morava até um tempo atrás em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Desde os seis anos de idade fazia aulas de teatro e já visitava hospitais de crianças com câncer (…) Descobriu a ONG por acaso numa viagem a São Paulo para a campanha de doação de sangue, quando encontrou uma palhaça pelas ruas. Foi então que uniu o útil ao agradável e decidiu também trabalhar na ONG.
— Lá no Mato Grosso do Sul eu já fazia trabalhos voluntários, sempre fiz, mas não ganhava nada, e eu preciso me alimentar, pagar aluguel. Quando conheci os Mensageiros, vi que poderia trabalhar fazendo o que gosto e recebendo uma ajuda de custo também. Não pensei duas vezes e me mudei de vez para São Paulo.
O trabalho consiste em vender cartões, com vários temas e mensagens, por um valor simbólico de três reais que é convertido em verba para a compra de tintas, fantasias, balões, bexigas, entre outros materiais, e para as visitas voluntárias nos hospitais — os Mensageiros por vezes são confundidos com os Doutores da Alegria.
Do montante arrecadado no dia com a venda de cartões, uma pequena parte vai para João como ajuda de custo, que recebe toda sexta feira – o trabalho não é registrado em carteira assinada. Os cartões são todos identificados na parte de trás com o nome da ONG, telefones, endereço da sede e página do Facebook. Os palhaços também são identificados com um crachá contendo o nome e o logo dos Mensageiros, tudo para evitar que falsos palhaços se aproveitem da situação para tirar vantagem (…)
João trabalha de terça a sexta em ruas e avenidas como a Brigadeiro Faria Lima. Às segundas-feiras ele faz visitas voluntárias a crianças com câncer no Grupo de Apoio ao Adolescente e a Criança com Câncer (GRAACC), na Vila Clementino. A passagem e a alimentação são custeadas pela ONG (…)
Primeira parada: Avenida Ipiranga
Chegamos ao ponto de ônibus da Avenida Ipiranga onde João começa seu trabalho. Ali, ele costuma pedir carona para os motoristas, e já dentro dos ônibus inicia a divulgação da ONG e a venda de cartões. Nem todos os motoristas vêem com bons olhos o ator, e ele recebe muitos nãos antes de pegar o primeiro coletivo.
— Alguns dias são mais fáceis, outros mais difíceis. Já teve motorista que me xingou, fingiu não me escutar, mostrou o dedo do meio, etc. Olhar de cara feia pra mim quando eu peço é o de menos. Se o motorista não permitir, eu não posso entrar no ônibus para vender os cartões mesmo se eu pagar a passagem.
Após uns 15 minutos pedindo caronas nos ônibus, finalmente nos deixam entrar pela porta de trás. Assim que o motorista abre as portas, temos que ser rápidos; a porta estava se fechando antes que eu entrasse por inteiro. Algumas pessoas entraram pela frente no mesmo ponto, mas o ônibus continuava um pouco vazio. João espera as pessoas entrarem e se acomodarem, então começa apresentando a ONG para vender os cartões.
— Bom dia a todos, meu nome é João e eu faço parte dos Mensageiros da Alegria. A missão da ONG é levar alegria, amor e esperança a todas as pessoas que precisam. Todos os dias, centenas de voluntários se maquiam de palhaços para levar alegria, amor e esperança a todas as pessoas que precisam em hospitais, orfanatos, comunidades carentes e asilos, pois todas as idades merecem felicidade. Porém, nosso foco principal são as crianças com câncer da rede pública. Por isso é importante levarmos alegria, amor e esperança a elas, pois uma criança feliz tem mais chance de cura do que qualquer outra. Agora eu vou entregar nas mãos de vocês lindos cartões e peço a todos que peguem, por educação e gentileza. Afinal, olhar não custa nada, né pessoal?!
João começa a distribuir os cartões. Entrega cinco para cada passageiro. Alguns se recusam a aceitar, outros pegam por curiosidade, outros ficam com o cartão na mão, mas sequer olham, e ainda outros fingem dormir enquanto ele passa no meio do corredor.
— Bom gente, infelizmente, não temos apoio nem do governo e nem da prefeitura, e o que mantém nosso trabalho há vinte anos em São Paulo é a colaboração de todos vocês. Cada cartão tem o valor simbólico de apenas três reais. Mas se você tiver aquela moedinha, aquele real na carteira ou na mochila como doação, qualquer valor será bem vindo. Agradeço a todos que puderam ajudar, seja comprando um cartão, seja com doação. Obrigado a todos e tudo de bom a todos nós.
O ator encerra seu discurso e aproveita para divulgar a campanha de doação de sangue Doe Sangue, Salve Vidas, criada por ele há uns anos no Mato Grosso do Sul. Essa campanha começou por acaso, quando ele resolveu doar em um hospital e acabou chamando vários amigos. Foi então que surgiu a ideia de mobilizar mais pessoas. Muitos famosos, como os sertanejos Zezé di Camargo, Fernando e Sorocaba e Lucas Lucco fizeram fotos e vídeos com João apoiando a campanha, e o ator divide seu tempo entre ser voluntário no GRAACC, trabalhar nos Mensageiros da Alegria e divulgar sua campanha de doação de sangue, que faz nos finais de semana e por meio de diversas redes sociais. Juntamente com os cartões, João sempre leva alguns panfletos da campanha, que contém fotos com famosos, bem como os requisitos básicos para ser doador. A camiseta de divulgação é obrigatória pelas ruas (…)
No primeiro ônibus João vendeu poucos cartões. Descemos alguns pontos adiante para pegar outro. No segundo ponto, mais alguns motoristas se recusam a abrir a porta de trás. Passados alguns minutos, conseguimos entrar no segundo ônibus. Estava um pouco mais cheio que o primeiro, e João esperava vender mais cartões. Mas não foi dessa vez. O dia começou “fraco”; poucos cartões vendidos, algum dinheiro de doações espontâneas.
Chegamos à Avenida Faria Lima. Ali andamos um pouco até chegar a um ponto de ônibus que já é conhecido por João: é o marco inicial da trajetória de idas e vindas na Avenida dentro dos coletivos. Dependendo do dia, ele faz a divulgação da ONG e a venda de cartões dentro dos ônibus e às vezes a pé, como tentou com algumas pessoas enquanto estávamos no ponto (…)
Pegamos o primeiro coletivo na Avenida Faria Lima. Ali, a venda de cartões aumentou consideravelmente. A meta de vendas por dia é de 40, mas às vezes ele cobre o dinheiro que seria arrecadado com a venda dos cartões através de doações espontâneas. O discurso é sempre o mesmo e o tempo é cronometrado (…)
Descemos do primeiro ônibus, atravessamos a Avenida Faria Lima e fomos para o outro lado, pegar outro ônibus que nos deixaria no nosso ponto inicial. Foi assim durante boa parte da tarde. Andamos de um lado para o outro da Avenida, em ônibus vazios, cheios, abafados, com ar condicionado e pessoas variadas, que olhavam com curiosidade, desprezo e admiração. Algumas perguntavam para João detalhes sobre ONG ou até mesmo sobre seu trabalho com a campanha de doação de sangue, que ele fazia questão de discursar sempre que terminava as falas sobre os Mensageiros da Alegria (…)
A fome começava a bater, já passava do meio-dia. João, que não tinha comido nada, dizia estar sem apetite mas tremia um pouco, acredito que era devido à falta de alimentação.
Todos os dias, já na avenida, ele compra uma água de coco em um mercado, que toma em segundos, e só deixa para almoçar quando termina seu “expediente” — geralmente quando tem compromissos à tarde com a campanha de doação de sangue ou quando atinge a meta de 40 cartões vendidos.
Voltamos ao nosso ponto inicial, onde começamos nossa jornada, e João aproveitava para abordar outras pessoas na rua enquanto as primeiras nuvens cinzentas começavam a aparecer no céu. Se começasse a chover, o trabalho seria interrompido. Após mais algumas negativas de motoristas, entramos no terceiro ônibus. Nesse, as pessoas foram mais receptivas; compraram mais cartões e doaram mais também (…)
Os ônibus seguintes estavam bem cheios e abafados, e o ator só conseguiu distribuir cartões para os passageiros que estavam próximos à porta de trás, pois não havia como passar no corredor. Nesse, muitos fingiram não escutá-lo. Pergunto se ele não se intimida ao ser ignorado.
— Às vezes todo mundo presta atenção e às vezes ninguém. Já tive impressão de falar sozinho. Tem ônibus que a gente entra e todo mundo coloca o fone e finge que está dormindo.
Uma vez aconteceu isso, eu entrei e todo mundo virou a cara, e quando eu fui entregar os cartões, ninguém pegou. Aí eu comecei a falar: “nossa, pessoal, vocês estão parecendo as crianças com câncer, que como estão doentes, ou ficam dormindo ou desanimadas. Mas quando a gente chega nos hospitais levando alegria e amor, tudo muda. Já pensou se fosse com a família de vocês? Se um palhaço entrasse lá e virasse a cara para um filho de vocês, ou até mesmo para vocês?”. Depois disso, todo mundo do ônibus comprou, porque acho que aquilo tocou. Sabe, não precisa comprar e nem doar, mas só de prestar atenção no meu trabalho e no trabalho da ONG, a divulgação, para mim já está de bom tamanho. Ninguém gosta de ser ignorado.
(…) Paramos em um local tranquilo e um pouco escondido para João contar o dinheiro e o total de cartões que ainda restava. O relógio marcava 14h30, e precisávamos ir embora porque ele tinha uma gravação para fazer da campanha de doação de sangue. Eu já estava bem cansada de ficar correndo e andando de um lado para o outro. Fazia muito calor e a maquiagem de João estava derretida.
Só cerca de 30 cartões foram vendidos. Grande parte do dinheiro que havia ali era de doações. Muitas moedas saiam dos bolsos de seu jaleco. Fizemos mais duas viagens dentro dos ônibus e fomos almoçar. No caminho, pegamos outro ônibus, ainda de carona, até a Avenida Paulista. Grande parte do trajeto foi feito pela Avenida Rebouças, local onde João também costumava trabalhar. Nesse ônibus ele também aproveitou a oportunidade e tentou vender mais cartões, sem sucesso. Sentamos nos bancos e aguardamos chegar ao nosso destino (…)
Fomos embora, de volta à sede da Associação. Pedimos carona novamente. Lá, João entrega os cartões e o dinheiro arrecadado no dia, bem como começa a remover sua maquiagem. Alguns lenços de papel são gastos para tirar completamente o desenho do rosto. Depois disso ele vai para sua casa, a poucas ruas dali, descansa, toma seu tereré, uma bebida parecida com o chimarrão, que é muito consumida por quem nasceu e mora no estado de Mato Grosso do Sul, e se dedica à sua campanha de doação de sangue.
No dia seguinte, o trabalho com a ONG recomeça.
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