“Benditos os que nunca lêem jornais, porque verão a Natureza e, através dela, Deus.” (Henry David Thoreau)
Seja pelo cansaço ou pela preguiça, tenho me sentido cada vez mais refém do meu sofá e da TV. O ócio para mim, diferente do que disse o de Masi, está longe de poder ser criativo. As coisas ficam por se fazer, se eu me submeto a esse pecado. E como me submeto!
Na roça, deixar a vida acontecer lá fora significa assistir ao mato crescer desordenado, as plantas secarem nessa época de estiagem, os incômodos irem se acumulando…. Além disso, pensei, o ócio só pode mesmo ser criativo para alguém como o de Masi, que deve morar em apartamento ou então ter alguém para roçar o mato de sua casa no campo.
Aqui, na minha casa, algumas coisas insistem em me lembrar do quanto eu sou capaz de procrastinar. O fim de semana passa, as férias, a folga, e aquela lâmpada fica por se trocar, a maçaneta continua quebrada, as dobradiças da janela rangendo, sempre me dizendo da inércia de que sou capaz. E eu me abato. Como somos bons para nos culpar!
Mas de tudo o que me incomoda, nada me atormenta mais do que aquele monte de entulho no quintal. A última reforma da casa gerou um acúmulo de resíduos da construção que não foi removido sob o pretexto de ser usado na sequência da reforma. Restos da construção, telhas e blocos quebrados,… Cheguei a considerar chamar uma dessas empresas que se livram rápida e milagrosamente do entulho alheio.
Não faz isso, Valte, ocê vai precisá dele. Amanhã ou dipois ocê contiua a reforma, vai usá esse intulho tudo…
Será, mas tem tanta terra no quintal!?… Não discuti com o pedreiro. Ele devia estar certo. Mas aquilo de guardar as coisas sob contando que, “no futuro”… não sei. Lembrei-me do meu pai, que guardava até aqueles araminhos que amarravam sacos de pão de forma.
“Por isso que sempre eu tenho as coisas quando preciso. Não jogo nada fora!” ele dizia. Aquilo, no passado, até que me parecia muito sábio, tanta prevenção… Até hoje guardo os araminhos que se acumulam demais, porque, na verdade nunca usávamos todos os araminhos e isso só se repete agora também. Hábitos estranhos, como dessas pessoas obcecadas com as sacolinhas plásticas do supermercado ou dessas outras ávidas pelas de papel, que saem das lojas para entulhar armários e cantinhos vazios de tantas casas.
Mas, assim como em qualquer trabalho, não se deve contar com “o dia da inspiração”. A gente tem é que não pensar, ir lá e fazer o que tem de ser feito. Olhei, então, para aquela montanha de lixo me desafiando e fui pra cima. Comecei puxando o mato, depois fui juntando tudo o que poderia queimar numa fogueira: pedaços de madeira, galhos das árvores… o que foi me impressionando foi a série de coisas que eu não esperava encontrar naquele monte de passado: materiais plásticos, latas de metal, um tanque de lavar roupas, a metade de um pneu!… aquilo tudo de que fui me lembrando e que foi me constrangendo. Concluí que não conseguiria me livrar de tudo aquilo num único dia. Alguns materais exigiam destinações específicas.
Ative-me à fogueira que não parava de aumentar. Por não achar prudente atear fogo em tanta coisa de uma só vez, interrompi quando cuidei que mais fogo poderia atingir as árvores em redor.
Não foi preciso mais do que um palito de fósforo aceso. O papel, o mato seco, os galhos… pus uma cadeira bem de frente e fui assistindo ao espetáculo como se eu fosse o dono daquele vulcão biritibense… puxei outra cadeira e peguei uma taça de vinho. Tudo foi-se consumindo. O fogo levava meus descuidos, minha estupidez, meus equívocos, meus apegos… Do meu lado, a cadeira ficou vazia. O acaso não me trouxe a mulher, a fé não foi suficiente para ter Jesus ali comigo numa conversa de homens, a imaginação não materializou meu pai tocando sua viola, pessoas que eu queria ali, comigo… Mas o vinho facilitou meu entendimento: como é simples nos livrarmos do passado, das coisas que guardamos. Belezas derrubadas na ventania, vergonhas de que queremos nos livrar, “mundanices” reais, eternidades ilusórias… Como tudo pega fogo tão rapidamente!
Às vezes eu ia até a incandescência interferir na consumação. Não queria resquícios no dia seguinte. Ajudava a fazer tudo desaparecer e sumir-se em fumaça. O vermelho foi virando cinza, tudo reduzido, transformado… O entulho menor, maior em mim a leveza, a sensação de que meu quintal se embelezara e de que, apesar de tão sujo, eu estava estranhamente… limpo! Fiz o que devia. Sem adiar…
Quando a casa me chamou para dentro, já havia em mim o projeto de continuar a limpeza. No fim de semana seguinte, agora tudo parecia mais simples. Foi fácil e tão… prazeroso. Planos que eu sabia, não se cumpririam. Eu sabia apenas que escreveria sobre isso, que eu… criaria… sobre o ócio.
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