Da estrada via-se o mar de montanhas, as quais ganhavam altitude conforme avançávamos. Ondas verdejantes que refletidas à luz do sol tonavam-se fluorescentes. Atento, observei seus relevos e tonalidades. De repente fiquei à deriva. Como num retorno ao útero, pude fechar os olhos e descansar a alma.
Anoiteceu e ainda rodávamos: são quase 400 quilômetros que separam São Paulo de São Thomé das Letras, ou aproximadamente cinco horas de carro. Ainda era cedo, por volta das oito da noite da sexta, e poucos se deslocavam para o feriado de 21 de abril.
Em quatro amigos percorríamos uma estrada de terra sem fim. Paramos embaixo de uma árvore frondosa, desligamos o motor e os faróis e então era só o firmamento. Milhares de pontos brilhantes salpicavam no anis. O céu dessa região aparenta tamanha transparência que pensávamos ver a cada estrela, cada constelação, cada cometa, e tudo o mais que estivesse ali.
Percorremos o caminho derradeiro e ao som do Great Gig in the Sky curtimos nosso transe silencioso¬urno e só despertamos ao ver o alquebrado portal que leva à cidade.
São Thomé das Letras fica no alto de uma pedreira, ao sul de Minas Gerais. A pequena cidade tem suas ruelas revestidas por pedras sobrepostas com quase nenhum polimento. As quais, dizem os moradores, concentram grande quantidade de energia que nos deixa mais sensíveis, porque nossas emoções são potencializadas.
Seus habitantes são simples, generosos e queimados de sol. Primeiro foram os indivíduos em busca da espiritualidade oriunda das pedras quem invadiram a cidade nos feriados. Mas sua fama cresceu e hoje ela é invadida por toda sorte de tribos, de motoqueiros a hippies de primeira viagem. Naturalmente, com eles vieram alguns malefícios das cidades turísticas, como tumultos e pequenos furtos. O desmatamento causado pelas pedreiras também é um ponto negativo que merece atenção.
Uma das tribos invasoras é a dos universitários atentos. Encontrei a prova disso no microcosmo do meu camping. Toda noite formávamos uma roda heterogênea e debatíamos por horas. Eram jovens abertos a qualquer tipo de comunicação humana, cujo objetivo principal era o descobrimento de seu país, de seu povo, deles mesmos. Expressavam-se de maneira calma e original e eram abertos a novas formas de expansão da consciência. Fiquei surpreso por encontrar um grupo ainda disposto ao encontro e à troca daquilo sem valor monetário e sem fim.
Os mineiros nos falaram da onda de ocupação urbana que vem arrebatando a cidade de BH a partir do carnaval desse ano: o bairro de Santa Teresa, por exemplo, tem sido ocupado por frequentes manifestações políticas e culturais. Também expressaram a descrença de seus pares universitários em Aécio Neves, a qual teve decisiva influência na derrota do candidato em Minas Gerais durante a corrida presidencial. Fernando Haddad, por outro lado, é querido por seus investimentos na cultura paulistana.
Estudantes cariocas também nos falaram das ocupações das ruas de sua cidade. Segundo elas, os já conhecidos bloquinhos vêm tomando proporções casa vez mais políticas. Todos tinham interesse nas ocupações paulistanas, que aumentam em número e importância. A Casa Amarela, na Rua da Consolação, é uma delas. Antes abandonada, hoje é ocupada por diversas manifestações culturais, como ensaios de grupos de teatro.
Não estávamos no camping, mas em uma grande montanha recortada por cachoeiras e piscinas naturais, quando perguntei para Nina, uma das cariocas, o nome do livro que lia. “A Erva do Diabo, do Castaneda“, respondeu. No livro, o antropólogo Carlos Castaneda narra seu aprendizado com d. Juan, um índio yaqui que conheceu na fronteira dos Estados Unidos com o México. Com os ensinamentos de seu guia, o escritor nos traduziu novas formas culturais, literárias e de expansão da consciência. De certa forma, era o que todos fazíamos, absorvendo vorazmente a cultura uns dos outros, fazendo nossos rituais, amando o novo. Amando o todo.
Fotos: Rafael Rodini
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