Acordou em um lugar estranho. A luz do sol pegava em parte de seu rosto e uns pardais escandalosos faziam-na pensar que devia passar das nove. Não entendeu muita coisa, mas achou tudo bom. A cama macia, os lençóis muito brancos e finos de incontáveis fios egípcios, por certo. Recostou-se e tentou se lembrar… havia sido uma festa muito divertida a do dia anterior. Uma espécie de despedida, pelo tempo que ficaria fora: bolsa de estudos na Alemanha, sonho de qualquer jovem pesquisadora… só não entendia como tinha ido parar naquele lugar. Seria uma pousada, parte das surpresas dos amigos, talvez?…
Saindo do quarto, passou pela sala de estar também muito espaçosa e elegante, depois pela sala de jantar de um bom gosto extremo: mesa de madeira de lei, mais de dez cadeiras estofadas, um lustre centralizado, ricamente ornado com cristais, mas de design moderno, tudo digno de uma dessas casas de revista. Até mesmo para ela, que não era uma moça pobre, aquilo era de uma sofisticação de tirar o fôlego. O conceito aberto permitiu que, mesmo de onde estava, pudesse ver a cozinha, igualmente ampla e arejada. Naquele mar de um branco sóbrio enfeitado de cobre, divisou um homem, sentado ao balcão, por trás de um jornal aberto que lhe escondia apenas a região da boca.
Ela foi chegando devagar, contando com a concentração daquele senhor de uns 43 anos, aparentemente alto, 1,80 talvez, forte, negro de um tom de pele que só se encontra no Brasil.
– Bom dia, dormiu bem, Luísa?
– Sim.
– Ah, que bom?
– Posso lhe servir um pouco de café ou você prefere o seu chimarrão apenas?
– Ãh, acho que só o chimarrão, é um tanto tarde pra mim, …
– Não exatamente, deixa ver…Desconsiderou ou se esqueceu do relógio de parede bem a sua frente e voltou-se para o seu próprio, de pulso, requintado, como tudo, aliás… Não, não… nem são dez ainda. É que para uma pesquisadora tão disciplinada…
– Me desculpe, eu estou um tanto confusa… quem é você?
Foi quando ele sorriu. Que riso delicioso era aquele?! Era mágico demais: dentes de um branco nítido e de uma verdade profunda. Nem percebeu que também sorria, mesmo que, naquela situação, não haveria qualquer motivo para se mostrar amistosa.
– Sou eu que devo me desculpar. Nós não nos conhecemos, ou melhor, eu a conheço, mas você não sabe quem eu sou.
– Mas como eu vim parar aqui, neste lugar?
– Você não gostou?
– Não é isso. O lugar é muito bom… é bonito, mas… eu nem sei quem você é, e… eu estou começando a ficar assustada com tudo isso. Eu não te conheço, como você mesmo disse….
– “Eu entendo…” disse aquilo com uma voz macia, cheia de calor e compreensão. Luísa se sentiu estranhamente protegida, era irônico demais. “Pegue o seu chimarrão e venha se sentar comigo na sala, é mais confortável.” Ela obedeceu, mas o pavor já estava visível demais.
– Chame-me de Gabriel, como o anjo… Disse em tom de brincadeira
– “Chame-me”, por quê? Não é este o seu nome verdadeiro?
– Acredite-me, em pouco tempo, isso não terá a menor importância.
– Tá. E por que eu estou aqui, o que está acontecendo?
– Eu roubei você. Por um tempo, para termos um “diálogo criativo”… Pessoas como eu e você ressentimos da falta de apenas ter conversas inteligentes, não é mesmo?
– “Me roubou”, você está dizendo que fui vítima de um sequestro?
– Tecnicamente, sim…
– “Tecnicamente?…”
– É, tecnicamente.
– Olha, eu não sou rica, minha família tem algum dinheiro, mas não somos ricos e…
– Eu sei. Sua mãe é artista plástica e seu pai representa uma indústria farmacêutica.
– É… eles não poderiam pagar um resgate.
– Que bom para todos nós que eu não pretendo pedir um, então. Não é mesmo?
– “Mas… então…” Ela estava aterrorizada naquele momento. Enquanto que ele parecia ouvir os pensamentos da moça.
– Ah, não… eu não vou violentar você, fique tranquila. Você nem é o meu tipo.
O silêncio dela e o semblante tenso a entregaram mais uma vez.
– …
– Não há nada de errado com você. É uma linda mulher. Eu é que refiro os homens.
– Você é…?
– Gay? Sim, sou gay.
– …
– Mas não vá querer fazer um filme disso, heim? Não seria original. A subjetividade negra parece já ter sido descoberta, rendeu até Oscar de melhor filme… você viu?
– Se eu vi?… o quê?…
– Moonlight?
– Ah, vi… é lindo. Muito lindo.
E então ele se sentou mais perto, com muito cuidado para não assustá-la, aproximou-se devagar, tirou-lhe a cuia do chimarrão das mãos que pareciam ter-se congelado numa mesma posição e lhe disse:
– Olha, Luísa, eu sei que está sendo tudo muito louco pra você, que você está com medo e tudo mais, mas não havia outro jeito. Eu precisava fazer isso. Você não me daria uma oportunidade para conversarmos. Eu sei que você nem gosta de negros, nunca escondeu isso de ninguém. Pra você somos todos iguais: o moço da cantina, o porteiro, o garçom… eu poderia ser qualquer um desses, que você não me reconheceria hoje…
– Mas…
– Mas eu não te trouxe aqui para cobrar nada, para me vingar… só queria conversar com você. Estamos longe de tudo, mesmo que eu te deixasse sair, você sé se cansaria e se perderia aí fora. Fique comigo…
– Eu não vou passar outra noite aqui!
– Nem eu.
– Ainda hoje, à noite, eu vou te levar para o aeroporto e você embarcará para Berlim. Confie em mim.
– Acho que eu não tenho escolha…
Respondeu só com aquele sorriso matador de quem ninguém seria capaz de discordar, contra o qual ninguém poderia. Nesse momento as mãos dele já estavam em torno das dela e Luísa não queria que elas saíssem dali, os olhos dela presas naqueles olhos brilhantes de serpente. Além disso, a boca daquele belo espécime de macho estava perto demais da boca dela. Um hálito doce e fresco, sutil e forte… era mesmo um homem encantador.
– Você me ajuda com o nosso almoço, enquanto conversamos? Quero saber mais da sua pesquisa.
De fato, prepararam o almoço juntos e conversaram sobre os mais diversos assuntos. A pesquisa foi só um pretexto para discorrerem sobre filosofia e literatura – alemã, inclusive -, psicologia e cinema, física e política, Bach e Marx. “Gay? ele não é gay!”. Pensava. Quanto mais bebia, mais se embriagava, não com o álcool, mais com os encantos e com aquela virilidade sem fim. Ah, mais muito mais com aquele homem, aquele corpo, aquela energia toda que ela não pensava existir numa pessoa só.
– Eu acho que estou meio tonta.
– Eu imagino, você precisa comer alguma coisa. Sente-se, eu quero te servir…
Ela riu com a frase. Se ele quer me servir mesmo, estou feita, pensou. Vou repetir sem medo!… Estranhou o pensamento, considerou que se fosse outro o contexto, talvez não estivesse tão envolvida… deixou de lado. Afinal, seus pensamentos eram só seus e, naquele momento, o que ela queria – só o que queria – era “ser servida” daquele homem cheio de sabores.
O almoço estava excelente, mas teve lucidez para entender que a companhia é que fez a refeição tão plena. Gabriel era de uma inteligência absurda, uma sensibilidade de artista… “É, talvez fosse mesmo gay, que desperdício!”
– Você não é gay, é?
– Isso é relevante? Para você?
– … não, acho que não.
– Por que você não dorme um pouco? Descanse, eu chamo você para irmos. O seu voo ainda demora umas horas.
– É, é só de madrugada.
Eles estavam no sofá da sala. A lareira estava acesa e já era a segunda garrafa de vinho francês, seus prediletos. Ela se deitou e logo adormeceu. Ele ainda colocou sobre ela o cobertor macio, enquanto ouvia indiscriminadamente o barulho da chuva e do fogo, sem poder dizer o que era melhor em tudo aquilo.
Acordou sem que o Gabriel a chamasse. Não sabia que horas eram, mas não devia estar atrasada. Ela o procurou com os olhos rapidamente, sem encontrar. Ele não estava na casa, mas ela não teve medo. Confiava naquele “sequestrador” sui generis e a confiança a fez sentir-se acompanhada. Enquanto se deslocava despreocupada por aquela casa de sonho, ouviu um som de violão. Foi seguindo os acordes que vinham da varanda. Pegou um casaco e foi se aproximando lentamente como fizera pela manhã, sem, entretanto, a alegria e a segurança do presente quando tinha o que achar.
– Gabriel?…
O som foi ficando mais e mais forte até que o encontrou, pousado numa poltrona, sobre a qual manejava o violão com uma autoridade e uma sensualidade impressionantes. De onde estava e já podia ver, parou, que não queria estragar, desfazer aquela cena, aquela pintura. Com uma mão ele segurava com firmeza o corpo do instrumento como se amparasse uma mulher; com a outra, os dedos tocavam nas cordas como se apagassem os lábios de… alguém. O violão era a mulher que ela queria ser algum dia, deitada sobre aquelas coxas fortes, rochas de veludo-cacau… “Não, ele não é gay! Não pode ser!”
– Gosta?
– Demais…
– É “Astúrias”. Aprendi com meu padrinho.
– E foi ele que… te ensinou tudo?
Sorriu novamente aquele sorriso de feitiço que ela quis pegar para guardar e ter com que se lambuzar nas noites solitárias… Talvez ele quisesse demonstrar constrangimento ou ignorância do que ela sentisse, mas nem tentou. A cumplicidade em ambos já era grande o bastante.
– Vamos?
– Já é hora?
– Sim. Eu não quero que se atrase.
– A minha bagagem?…
– Está no carro, quer conferir?
– Não, eu confio em você.
– No seu sequestrador?
– Só ‘tecnicamente”…
Quando ele foi pôr a venda nos olhos, ela ainda segurou aquelas mãos de delírios para dizer…
– Isso é mesmo necessário? Já disse que confio em você. Você não confia em mim?
Foi então a primeira vez que o viu baixar o olhar. Entendeu logo e, então foi ela que o conduziu para vendá-la. O que adveio, entretanto compensou todo o resto: num gesto demorado, a entidade negro deixou seus lábios de realidade repousados na testa da moça, tempo suficiente para que ela registrasse no tato aquela sensação que, ela sabia, jamais se esqueceria.
Já no avião, com a venda nas mãos, sentia-se completamente cega, revendo toda sua vida. Nunca saberia se aquele anjo de alma e pecado era mesmo gay ou não, se era Gabriel ou não. Todas as dúvidas, menos a de que estava totalmente envolvida, seduzida, apaixonada fosse pelo que fosse… pela ideia de nunca poder ter o que queria.
Sobre as nuvens, o mundo inteiro lá embaixo… o pranto de uma mulher solitária, diálogos presos para mais uma vida, um corpo sadio, com tanto amor represado!
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