No jogo de xadrez, o gambito é um tipo de abertura em que se sacrifica um peão para causar maior dano ao adversário. Tal lance é um ardil, uma rasteira, uma artimanha, trapaça engendrada para favorecer, muitas vezes, a movimentação dama, da rainha. Com o péssimo título O Gambito da Rainha, a história principia nos anos 50.
A mais bem sucedida e maratonável
A série da Netflix segue a trajetória da órfã Beth Harmon da infância à maioridade. Parte da descoberta do xadrez, seu completo domínio, suas sucessivas vitórias e derrotas até o enfrentamento com seu pior “oponente.” Parece spoiler, mas isso não dá conta de dizer o quão empolgante é acompanhar os 7 capítulos da mais bem sucedida – e maratonável – série da mais popular plataforma de streaming do mundo.
Após o suicídio da mãe na colisão de um carro (de onde sai sem um arranhão, mas traumatizada), Beth Harmon, com 11 anos, é confinada numa instituição de meninas à espera da adoção. Arredia, desconfiada, mas curiosa, estabelece contato com a mais “esperta” das internas, Jolene, uma garota negra, desbocada e que logo se torna sua melhor amiga. O xadrez, ela descobre (e aprende) com o ríspido e arredio zelador do orfanato, Sr. Shaibel, em incursões ao porão para limpar o apagador.
Menina-prodígio, breve ela se vicia no jogo e nas pílulas dadas na instituição para “acalmar/cedar” as crianças. Seu vício em comprimidos, álcool e outras drogas, combinado com as memórias tristes com a mãe, perduram e aumentam conforme cresce, revelando a um só tempo sua força e fragilidade. Na trama, destaca-se a ambígua relação com a mãe adotiva, com diversos jovens enxadristas com quem se envolverá em relações de admiração, amor e amizade.
Produção original da Netflix
A série apresenta uma belíssima reconstituição de época, com espaços e figurinos glamourosos que pontuam a transformação da protagonista de menina pobre rejeitada a “star” nacional, invejada por nerds e modelos.
Se os filmes A bruxa e Emma não tinham feito da atriz anglo-argentina Anya Taylor-Joy um estrela, sua sensacional interpretação desta enxadrista ruiva obsessiva (à beira do autismo), revelou ao mundo o quanto ela é capaz emprestar seus olhos grandes e carisma incomum para compor uma personagem sedutora, enigmática e complexa. Tanto é assim, que muitos julgavam ser a série uma adaptação biográfica da vida de Harmon, e não uma ficção.
A série principia in media res, – ou no meio do jogo, – e intercala flashbacks, mas avança sempre, alterando a perspectiva inicial que tínhamos dos personagens que interagem com Harmon. Elas são muitas vezes multidimensionais, evoluindo ao longo da trama, revelando-se incomuns, como Harmon. Embora o ambiente dos campeonatos de xadrez – que se intercalam ao longo dos episódios – seja predominantemente masculino, o foco da série é a mulher.
A luta de Harmon entre superar a si mesma ou se autodestruir no processo
A partir da figura da protagonista, uma galeria de “modos de ser mulher” – com todas as limitações da época – são postas em cena. A sexualidade feminina está sempre presente, e a descoberta do prazer também está indissociavelmente ligada ao xadrez, aos peões que caem seduzidos e derrotados por Harmon.
Os roteiristas, mesmo quando Harmon está no fundo do poço, recusam a salvação fácil através do homem, o amor romântico como solução. Distantes, ingênuos, vaidosos, invencíveis, ou quase, pouco podem diante da força de Harmon, por isso, são atraídos e movidos ao gosto da “dama”, feito as peças do xadrez.
Um jogo empolgante e intelectual e na tela
O Gambito da Rainha é dirigido com precisão, de modo clássico, traz cenários deslumbrantes e planos sequências engenhosos. As partidas nos campeonatos nunca são filmadas iguais, mas sempre de um modo dinâmico, o que torna um jogo intelectual, como o xadrez, empolgante na tela. Muita coisa acontece na história, impossível pontuar. Há reviravoltas em cada capítulo, decepções, perdas dramáticas, viradas românticas, encontros de aliados, traições, perdas e reavaliações.
Além disso, possui uma trilha musical fantástica, que põe a protagonista para dançar enquanto revela mudanças no seu interior. Contudo, não espere um grande vilão em gambito, o que há de melhor na história acontece dentro: a luta de Harmon entre superar a si mesma ou se autodestruir no processo.
O Gambito da Rainha é uma série tão acima da média, que a gente termina em estado de graça, apaixonado por Harlon, por Taylor-Joy, por Moses Igram (a atriz que faz a amiga-fada), pela triste e volúvel Alma. E não há, quem no final da série, não termine apaixonado pelo jogo de xadrez.
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