Ambientada em Nova York durante o ano de 1977, The Get Down conta a história de como, à beira das ruínas e da falência, a grande metrópole deu origem a um novo movimento musical no Bronx, focado nos jovens negros e de minorias que são marginalizados. Entre a ascensão do hip-hop e os últimos dias da disco music, a história se costura ao redor das vidas dos moradores do Bronx e de sua relação com arte, música, dança, latas de spray, política e Manhattan.

O diretor/criador da série, o australiano Baz Luhrmann (o mesmo de Romeu & Julieta e Moulin Rouge) voltou a exibir seu estilo exuberante – para não dizer excessivo. Com montagem frenética, cores hiper saturadas, ritmo clipado, inserts musicais e colagens mil de referências pop.

A série mostra o processo de evolução do gênero, glamourizando a periferia pobre e exaltando a cultura das ruas. Estão lá as imagens de arquivos da época, para a pau com sua reinvenção de Luhrmann. Para ele interessa o mito, a hipérbole do real, figuras sínteses, alegorias de um tempo. Po isso em The Get Down, não faltam personagens extravagantes coladas à personagens reais, ídolos do final década de setenta.

The Get Down conta de um modo muito particular o surgimento do movimento hip-hop, dos MC’s, DJ’s, da breakdance e do grafite. Aliás, cada um destes elementos que configuram o hip-hop é representado por um personagem. Apesar do clima barra pesada do Bronx do fim dos anos 70, com incêndios periódicos, gangues, e avanço do narcotráfico e de drogas como o crack, Baz Luhrmann faz com que vejamos toda a história do hip-hop por meio da trajetória de adolescentes, o que nos faz lembrar aqueles adolescentes de Cidade de Deus, a sintetizar vários aspectos históricos do Brasil contemporâneo.

As discotecas, a comunidade negra e latina, os cultos gospel, a efervescência da cultura pop e seu amor pela violência, a ascensão da música negra, as relações com o mercado fonográfico e a televisão, assim como as mudanças comportamentais, o racismo e a difícil relação com guetos e criminalidade costuram os seis episódios que configura também a segunda temporada.

Um dos maiores investimentos da Netflix em termos de orçamento, percebe-se a contenção de gastos imposta à segunda temporada, principalmente nos inserts (que deveriam ser filmados), e que acabam substituídos por desenhos no estilo dos quadrinhos/grafites. Duelos musicais pontuam a trama, com incríveis espetáculos de raps e breakdance lindamente coreografados. A edição é um espetáculo a parte, ricas são as fusões de planos temporais distintos, num ritmo quebrado/clipado em samples visuais. A sensualidade/sexualidade é outro ponto forte da série, que ao tratar de adolescentes não escamoteia nem mesmo o uso de drogas (e da violência que muitas vezes glamouriza), à maneira do realizado em Romeu & Julieta.

A realidade só interessa a Baz Luhrmann como ponto de partida para a fantasia e para sonho. Suas tramas abraçam o nonsense, o delírio. Ele busca o êxtase, o deslumbramento, e quase sempre alcança, embora seu estilo não seja para todos.

Mas o grande elogio que The Get Down faz, é à grandeza da cultura negra: na moda, no comportamento, no estilo e na arte. Seus personagens são o ponto forte, pois têm personalidades bem demarcadas e bastante consistentes, embora sirvam de alegoria de uma época. Defendido por atores talentosos e em total entrega, o grupo The Get Down é liderado pelo “dono da batida”, o sujeito que controla as picapes, mentor intelectual da “aventura”: o misterioso Shaolin Fantastic. Os integrantes são: órfão Ezekiel e três irmãos; Ra-ra, Boo-boo e Marcus.

Ezekiel (Justice Smith) é a palavra, o poeta. Protagonista da série, é da sua perspectiva que a narrativa se conta; a série sempre inicia, num palco onde ele, já adulto, discursa e se narra à plateia à sua frente. São dele as letras profundas feitas para batidas nas picapes. Seus raps iniciam tratando do drama pessoal da orfandade, da perda de pais para drogas, de sua origem multirracial (negra e latina), depois tratam da valorização da comunidade, da alegria dos encontros, evoluindo na sequência para o texto político, as mazelas (pobreza, racismo, tráfico, violência), os dilemas da comunidade negro/latina do Bronx, as aspirações da juventude pobre, preta e periférica.

The Get Down

Ra-ra (Skylan Brooks) é o cérebro, aquele que elabora estratégias para viabilizar os projetos, a mente empresarial que enxerga no movimento a grandeza de uma cultura que se constrói. É empolgado, engraçado, indagativo. Sempre propositivo e sagaz, é quem traz a solução para todas as questões práticas que se apresentam ao grupo.

Boo-boo (Tremaine Brown Jr.) é o caçula, é o corpo, por isso ele representa o desenvolvimento da breakdance. Canaliza os desejos – se envolve com o tráfico, vira vapor para bancar uma garota ordinária que só se interessa por dinheiro e drogas. É símbolo da ingenuidade, da tentação da grana fácil, das carências saciadas, da grana/ostentação, por isso deseja abandonar os estudos e ser o “cara das ruas”. É a face da vulnerabilidade dos garotos nascidos no gueto.

The Get Down

Marcus ‘Dizzee’ Kipling (Jaden Smith) é o artista por excelência, artista do traço, do desenho, por isso é o cara da pixação dos trens e do grafite. Tem consciência do poder da criação e deseja deixar sua marca no mundo, nem que para isso tenha que se arriscar numa postura poética e política. É o menos desenvolvido como personagem, com pouca presença e número reduzido de falas. Marcus é explorado as cenas mais delirantes, gráficas, visuais. Seus desenhos cobrem as lacunas da história, sintetizam trechos da ação. É também o personagem sexualmente divergente, atraído por um outro pixador louro. A homoafetividade e união inter-racial é pouco desenvolvida na trama (sempre num tom muito poético e quase nunca carnal), no caso de Marcus, este “pudor” resida no fato de o ator ser filho do astro Will Smith.

The Get Down

Shaolin Fantastic (Shameik Moor) é o cara das ruas, órfão a serviço do tráfico, amante (à contragosto) da voraz, feroz e “incestuosa” Mama. Shaolin se inspira em Bruce Lee, é um herói falível, quase um anti-herói. Começa a trama como homem-mistério do grafite, arte que abandona ao dominar a discotecagem, mostrada na primeira temporada como se fosse uma iniciação mística. É extraordinário no break e streetdance, mas tudo fica em segundo plano quando passa a comandar as picapes e samplear. Sempre dividido entre a música e o tráfico, do qual tenta se dissociar, sempre é levado – pela necessidade de sobrevivência – à criminalidade. É solitário, amargurado, nem sempre confiável, contudo, acredita no dom de sua arte, o que o torna não apenas narcisista, muitas vezes tolo e egoísta.

Completam o quadro representativo, Mylene Cruz, cantora gospel negro-latina, filha do Pastor Ramon Cruz, conservador, ex-alcoólatra, bastante controlador e egoísta. Ela busca uma carreira entre as divas da Soul Music, ser uma nova Donna Summer, rainha da Disco Music. Tem como parceiras as backing vocals Yolanda e Regina, suas confidentes e amigas inseparáveis. É ambiciosa, sexy e apaixonada pelo protagonista Ezekiel. Representa a mulher negra e seu caminho para independência feminina.

Cadillac (Yahya Abdul-Mateen II) é o vilão, inimigo de Shaolin fantástico com quem divide a “preferência” da mama Fat Annie, sua mãe dominadora e assassina. Ele é um narcotraficante sempre envolvido em negócios ilícitos diversos. Administra a discoteca Inferno e uma gravadora de soul, disco e black music. É vaidoso, veste-se de modo extravagante, sexy, um predador sexual. Sempre impulsivo, ele é o representante da dança e do gênero disco, que defende contra os avanços do hip-hop. Mr. Gunns (Michel Gil) é um político oportunista, ligado ao mercado imobiliário e envolvido com interesses escusos. Demagogo e mal intencionado em relação às necessidades da população do Bronx, ele se tornará mentor de Ezekiel com o intuito de levá-lo à universidade. Estratégia usada pelo diretor para mostrar o que sucede neste momento na camada social rica, branca e poderosa e como esta corrobora para desigualdade e miséria nos guetos.

Mr. Gunns tem uma aliança com Francisco ‘Papa Fuerte’ Cruz (Jimmy Smits), empresário de grande influência política na comunidade latina, empreendedor de imóveis, está igualmente ligado a ações nada lícitas, embora tenha, sim, um grande sentimento de pertencimento ao Bronx. É amante da esposa do Pastor Ramon, seu irmão, e pai verdadeiro de Mylene Cruz, a quem apoia e gerencia a carreira em ascensão.

Há uma profusão de personagens e peripécias que vão pontuando a trajetória da “banda” em paralelo a mudanças históricas no Bronx/Nova Iorque/EUA. Para além das fronteiras, ele trata da ascensão de um gênero musical – o rap – que nos EUA se tornaria hegemônico, indissociável da própria música e cultura atual.

Embora The Get Down seja articulada em torno de uma trama de amor romântico entre Ezekiel e Mylene, assim como as relações de amizade entre os membros da banda, o diretor Baz Luhrmann criou uma série que – mais que entreter, – conta com desenvoltura, inteligência e estilo o fenômeno do hip-hop, seu poder de denúncia de mazelas sociais, dar visibilidade aos marginalizados, de conscientizar e e enaltecimento o cidadão negro e/ou excluído. The Get Down nos fala, portanto, da grandeza da periferia negra e sua importância para arte do século 21.

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