Não foram poucas – mas não foram mesmo – as mulheres que fizeram diferença na história do Brasil e, pra ser mais justo, continuam fazendo.
Que a escolha de Luísa Mahin, Laudelina Campos de Melo, Carolina de Jesus, Maria Amélia de Almeida Teles e Maria da Penha possa representar a todas as que, desde sempre, resistiram, lutaram e viveram por dignidade nesse país.
Luísa Mahin e a resistência contra a escravidão
Mãe biológica de Luiz Gama, Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil e que costumava dizer que sua mãe era princesa na África, não se pode afirmar se Luiza nasceu realmente no continente africano ou na Bahia, Brasil. Sabe-se, no entanto, que pertencia à tribo Mahin – conhecidos no Brasil como Malês –, nação originária do Golfo do Benin, noroeste africano, que no final do século XVIII fora dominada pelos muçulmanos vindo do Oriente Médio.
Escrava na Bahia, conseguiu comprar sua liberdade por volta de 1812 e sobreviveu trabalhando como quituteira em Salvador. Aproveitando-se se sua profissão, participou de todas as revoltas escravas que ocorreram na capital baiana nas primeiras décadas do século XIX: de seu tabuleiro eram distribuídas as mensagens conspiratórias, em árabe, através dos meninos que supostamente com ela compravam quitutes. De modo que esteve envolvida tanto na Revolta dos Malês, em 1835, como na Sabinada, em 1837-38. Caso o levante dos malês tivesse obtido êxito, aliás, Luísa certamente teria sido reconhecida como Rainha da Bahia.
Seu destino é apenas sugerido. Há a possibilidade de que tenha participado de outros movimentos de insurreição no Rio de Janeiro e que tenha sido capturada e deportada para a África. Alguns autores consideram, porém, a possibilidade que ela tenha conseguido fugir indo instalar-se no Maranhão, onde, com sua influência, teria se desenvolvido o chamado tambor de crioula.
Laudelina Campos de Melo e a resistência contra a escravidão moderna
A Proposta de Emenda Constitucional 66/2012, a PEC das Domésticas, foi aprovada em 2013. Por meio dela, a categoria passou a ter uma série de direitos garantidos, incluindo carteira assinada, FGTS, seguro desemprego, férias remuneradas e adicional noturno. O número de pessoas com carteira assinada, ali, aumentou de 17,8% em 1995 para 30,4% em 2015.
Mas a dinâmica social pós abolição da escravatura ainda ecoa no mercado de trabalho atual. Somos o país com o maior número de trabalhadores domésticos no mundo. Existem hoje no Brasil cerca de 7,2 milhões deles. Desse total, 93% são mulheres. E dessas mulheres, 62% são negras.
Importa ressaltar que a conquista de direitos de todas as domésticas passa fundamentalmente pela história de uma mulher negra: Laudelina Campos de Melo.
Criadora do sindicato das domésticas de Campinas, em 1936, o primeiro do Brasil, ela teve uma trajetória que combinou, de forma singular, a luta pela valorização do emprego doméstico, o feminismo e ativismo pela igualdade racial.
Nascida em Poços de Caldas, Minas Gerais, em 1904, era filha de uma empregada doméstica e doceira na cidade. Perdeu o pai, que era lenhador, aos 12 anos e teve que abandonar a escola ainda no primário para cuidar dos cinco irmãos menores e ajudar a mãe nos preparos dos doces.
Antes de completar de completar 18 anos, Laudelina teve sua primeira experiência como empregada doméstica. Nesse momento nasceu a indignação com o cotidiano marcado pelo racismo dos patrões, além da exploração e más condições do trabalho.
Aos 20 anos, Laudelina se mudou para Santos, onde continuou a trilhar o mesmo caminho da mãe empregada doméstica e deu sequência à jornada de ativismo, passando a integrar o Grupo da Frente Negra, que reunia entidades que lutavam por melhores condições político e culturais para a população negra. No litoral de São Paulo, ela conheceu e se casou com Geremias Henrique Campos Mello. O casal se mudou para Campinas, onde tiveram dois filhos, se separaram posteriormente e onde Laudelina aprofundou sua luta em prol das trabalhadoras domésticas. Nos anos seguintes, contribuiu para a criação de associações similares no Rio de Janeiro e em São Paulo, entidades que, em 1988, dão origem ao Sindicato dos Trabalhadores Domésticos. Laudelina Campos de Melo morreu em 1991, em Campinas.
Carolina Maria de Jesus e a resistência contra a exclusão social
“Eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.” Relatos como este foram descobertos no final da década de 1950 nos diários da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Considerada uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil, era moradora da favela do Canindé, zona norte de São Paulo. Trabalhava como catadora e registrava o cotidiano da comunidade em cadernos que, de acordo com minha mãe, eram dados por meu bisavô, dono de uma papelaria no Bom Retiro na época.
Nascida em Sacramento (MG), Carolina mudou-se para a capital paulista em 1947, momento em que surgiam as primeiras favelas na cidade. Apesar do pouco estudo, tendo cursado apenas as séries iniciais do primário, ela reunia em casa mais de 20 cadernos com testemunhos sobre o cotidiano da favela, um dos quais deu origem ao livro “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, publicado em 1960 e traduzido para mais de dez idiomas.
Carolina refletia sobre o cenário de desigualdade e escrevia sobre as pequenas coisas que compõem a condição humana. A preocupação com o que vai se comer no dia. A repetição da busca da água todas as manhãs. A brutalidade do ambiente: a cidade, a favela, as pessoas.
O quarto de despejo surge como uma metáfora para a desigualdade que estabelece seu papel e sua posição nessa história: Carolina aponta que, enquanto o centro da cidade é a sala de visitas, a favela é o quarto onde se joga o indesejável, o entulho, tudo aquilo que se quer esconder. Sua escrita, no entanto, é sua forma de se recusar a ser “despejo”, a ser “resto”. Seu olhar apurado convida o leitor a ver humanidade nos lugares onde a cidade e a sociedade só nos ensinaram a ver miséria.
Carolina foi muito prolífica, para além do Quarto de Despejo; escrevia romances, contos, poemas, e, além daqueles que foram publicados – inclusive depois de sua morte, como Diário de Bitita –, ainda há milhares de páginas de material inédito de Carolina de Jesus, entre eles, seis romances, mais de cem poemas e cerca de 67 crônicas.
Maria Amélia de Almeida Teles e a resistência contra a Ditadura
“Fomos levados diretamente para a Oban. Tiraram o César e o (Carlos Nicolau) Danielli do carro dando coronhadas, batendo. Eu vi que quem comandava a operação do alto da escada era o Ustra (coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra). Subi dois degraus e disse: ‘Isso que vocês estão fazendo é um absurdo’. Ele disse: ‘Foda-se, sua terrorista’, e bateu no meu rosto. Eu rolei no pátio. Aí, fui agarrada e arrastada para dentro. A primeira forma de torturar foi me arrancar a roupa. Lembro-me que eu ainda tentava impedir que tirassem a minha calcinha, que acabou sendo rasgada. Começaram com choque elétrico e dando socos na minha cara. Com tanto choque e soco, teve uma hora que eu apaguei. Quando recobrei a consciência, estava deitada, nua, numa cama de lona com um cara em cima de mim, esfregando o meu seio. Era o Mangabeira (codinome do escrivão de polícia de nome Gaeta), um torturador de lá. A impressão que eu tinha é de que estava sendo estuprada. Aí começaram novas torturas. Me amarraram na cadeira do dragão, nua, e me deram choque no ânus, na vagina, no umbigo, no seio, na boca, no ouvido. Fiquei nessa cadeira, nua, e os caras se esfregavam em mim, se masturbavam em cima de mim. A gente sentia muita sede e, quando eles davam água, estava com sal. Eles punham sal para você sentir mais sede ainda. Depois fui para o pau de arara. Eles jogavam coca-cola no nariz. Você ficava nua como frango no açougue, e eles espetando seu pé, suas nádegas, falando que era o soro da verdade. Mas com certeza a pior tortura foi ver meus filhos entrando na sala quando eu estava na cadeira do dragão. Eu estava nua, toda urinada por conta dos choques. Quando me viu, a Janaína perguntou: ‘Mãe, por que você está azul e o pai verde?’. O Edson disse: ‘Ah, mãe, aqui a gente fica azul, né?’. Eles também me diziam que iam matar as crianças. Chegaram a falar que a Janaína já estava morta dentro de um caixão.”
Maria Amélia de Almeida Teles, ex-militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), era professora de educação artística quando foi presa em 28 de dezembro de 1972, em São Paulo, capital. Hoje, vive na mesma cidade, é diretora da União de Mulheres de São Paulo e integra a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos 2008, na categoria Defensores de Direitos Humanos.
Maria da Penha Maia Fernandes e a resistência contra a violência
Mais de 500 mulheres brasileiras são vítimas de agressão física a cada hora. Quase 30% das mulheres declaram já ter sofrido algum tipo de violência doméstica. Entre as mulheres que sofrem violência, mais de 50% se cala. Apenas 11% procura a delegacia da mulher. Em 61% dos casos, o agressor é um conhecido; em 19% das vezes, eram companheiros atuais das vítimas. E 43% das agressões ocorreram dentro das casas das vítimas.
Mas esses números poderiam ser ainda mais terríveis.
Simpático e solícito no início do casamento, o colombiano Marco Viveros começou a mudar depois do nascimento da segunda filha que, segundo relatos de Maria da Penha, sua esposa, coincidiu com o término do processo de naturalização e o seu êxito profissional. Foi a partir daí que as agressões se iniciaram e culminaram com um tiro em uma noite de maio de 1983. A versão dada pelo então marido é que assaltantes teriam sido os autores do disparo. Depois de quatro meses passados em hospitais e diversas cirurgias, Maria da Penha voltou para casa e sofreu mais uma tentativa de homicídio: o marido tentou eletrocutá-la durante o banho. Neste período, as investigações apontaram que Marco Viveros foi de fato autor do tiro que a deixou em uma cadeira de rodas.
Sob a proteção de uma ordem judicial, Maria da Penha conseguiu sair de casa, sem que isso significasse abandono do lar ou perda da guarda de suas filhas. E, apesar das limitações físicas, iniciou a sua batalha pela condenação do agressor.
A primeira condenação viria somente oito anos depois do crime, em 1991. Mas Viveros conseguiu a liberdade. Inconformada, Maria da Penha resolveu contar sua história em um livro intitulado Sobrevivi… posso contar (1994), no qual relata todas as agressões sofridas por ela e pelas filhas. Por meio do livro, Maria da Penha conseguiu contato com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que entrou com uma petição contra o Estado brasileiro, relativa ao paradigmático caso de impunidade em relação à violência doméstica por ela sofrido. Em 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou o Estado brasileiro por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres. No mês de outubro de 2002, faltando apenas seis meses para a prescrição do crime, Marco Viveros foi preso. Cumpriu apenas 1/3 da pena a que fora condenado.
Só depois de ter seu sofrimento conhecido em todo o mundo é que Maria da Penha viu o Brasil reconhecer a necessidade de criar uma lei que punisse a violência doméstica contra as mulheres. Para ela, que se tornou símbolo desta luta, a Lei nº 11.340 significou dar às mulheres uma outra possibilidade de vida. O caso de Maria da Penha foi incluído pela ‘ONU Mulheres’ entre os dez que foram capazes de mudar a vida das mulheres no mundo.
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