Literatura na Internet: O que mudou?
Todo mundo já percebeu que a internet mudou completamente a forma das pessoas se relacionarem. Poderíamos abordar diversos aspectos dentro dessa premissa: como por exemplo as possibilidades de trabalho remoto ou de começar um relacionamento por meio de um app. Mas escolhi estudar como os comentários nas redes sociais, replicações, inbox e outras ferramentas de interação online impactaram a literatura na internet. Mais especificamente, a obra de cronistas brasileiros que divulgam seus textos na internet.
Acontece que tenho um hábito pra lá de masoquista que é ler comentários na internet. E como leio muita crônica, pensava: “será possível manter-se completamente imune aos comentários?” Porque tem de tudo, né? Tem ódio, aplauso, amor desmedido, e sempre tem o comentário de quem não leu.
A curiosidade virou tema da minha dissertação de mestrado: “Autoria Compartilhada: a participação dos internautas no fluxo da obra de cronistas contemporâneos”, defendida na UFABC (Universidade Federal do ABC). Eu que não sou besta nem nada, elegi três caras que admiro muito para pesquisar: Xico Sá, Antonio Prata e Gregório Duvivier.
Busquei entender como a participação dos internautas interfere na obra desses escritores. O número de acessos de determinada postagem, os comentários que recebe, ou quantas vezes é replicada, direcionariam o tema das próximas postagens, ou mesmo livros do autor? Esses autores mudaram a forma de lidar com seus leitores depois da possibilidade de interação instantânea? E a resposta, senhoras e senhores, é sim! Ninguém jamais passará impune à interação via redes sociais. Relação essa que pode ser frutífera, inspiradora, mas por vezes tóxica.
“Parece que está falando de mim”
Xico Sá foi o primeiro nome cogitado para a pesquisa, dada a forte interação entre o
autor e seus leitores. Sá afirmou que o contato com os leitores tem grande parcela em seu processo criativo.
“Tem uma coisa assim: a leitora lê uma crônica que é a história dela: daí escreve: ‘nossa, parece que você tá falando da minha vida, parece adivinhar o que estou pensando’, isso é o que me deixa mais feliz. Falo de sensações que são universais, e como cronista, ir na mosca, é muito gratificante. Mas quem que me dá esse caminho é o leitor”.
De tanto escutar as agruras sentimentais de suas amigas, Xico Sá tornou-se uma espécie de especialista em relacionamentos afetivos, os quais explora com muito humor em suas crônicas ao lado de outros assuntos preferidos: como o futebol e política.
A grande diferença que a internet trouxe para Xico, na coleta de histórias que rendem boas crônicas, é que agora essas histórias chegam de mulheres desconhecidas por e-mail e por comentários em seu blog e também no Facebook.
O hábito de algumas leitoras confessarem seus dilemas pessoais com Xico Sá já criou situações muito difíceis, em que se tornou tênue o limite entre simplesmente contar uma história e um pedido de socorro. “Uma vez uma menina me escreveu, ela tinha 19 anos e me escreveu relatando uma desilusão amorosa total. Mais do que isso: era um bilhete suicida na verdade, muito forte. Na ocasião eu escrevi algo sobre amor forte também sobre ela, mas sem citar seu nome”, contou Xico. A história trazida pela internauta virou tema para a crônica O partido dos corações partidos, publicada no blog que Xico mantinha vinculado à Folha de São Paulo. Dizia assim:
“Tem remédio? Se a vida dói, drinque caubói, receito, diante da gravidade da hora. Carolina sequer levou um pé-na-bunda, não rolou sequer o velho kichute do desprezo em desleais pontapés. Carolina conta: simplesmente tomou conhecimento que o miserável das costas ocas já havia mudado de mala e cuia para a casa da outra sem sequer avisá-la do triste ocorrido. Soube por uma amiga da amante. Se a vida dói, drinque caubói, repito meu velho mantra.Tente também a psicanálise, a terapia tradicional, a macumba, os florais, a tarja preta, a reza forte, os deuses que dançam em todas as tabas, florestas e terreiros.Nada disso vai dar jeito imediato, mas tente, menina, tente. A gente precisa ter uma ilusão de cura nesse momento. Viver também é placebo.”
Com a praticidade da internet é muito fácil escrever para Xico Sá ou qualquer outro autor que se deseje falar. Antes havia que se escrever uma carta e mandar pelo correio. Hoje basta enviar um e-mail, um comentário, existe ainda a possibilidade de escrever de forma anônima.
Xico Sá não é a favor que comentários em redes sociais não sejam moderados. “Acho que tem que liberar tudo, assim também podemos ter uma ideia de com o que estamos lidando. Você ler uma caixa de comentários hoje em dia você perde a fé na humanidade, mas tem que deixar falar”.
Aviso, contém ironia
Ao contrário de Xico Sá, jornalista/escritor da velha guarda que viu a migração do impresso para a literatura na internet acontecer – Antonio Prata afirma que é difícil pensar em como a relação com leitores se dava antes da internet. Na opinião do cronista, é preciso ter cautela para creditar à internet o sucesso de um texto.
“Minha relação com a internet é bastante negativa, porque sou completamente viciado e preciso de ajuda! A internet é perigosa, é preciso ter noção de que ela não é uma amostra verdadeira, pois nem todos os leitores que gostam ou desgostam do que escrevo vai acessar o site para expressar sua opinião”.
Para Antonio Prata, portanto, os comentários não orientam sua percepção sobre sua escrita, o autor afirma, inclusive, que suas crônicas preferidas não são necessariamente as que fazem mais barulho. “Normalmente as crônicas que mais fazem barulho têm PT, PSDB, aborto ou maconha. Fico contente quando as pessoas se comovem com histórias de amor, fico achando que o mundo ainda tem jeito”.
Prata vivenciou uma situação no mínimo curiosa, nesse universo da literatura na internet.
Em novembro de 2013 publicou na Folha de São Paulo uma crônica que marcaria sua trajetória como cronista virtual, pois lhe mostraria o alcance de suas palavras e seu poder de persuasão, para o bem e para o mal. Intitulada Guinada à direita o texto trazia uma alta carga de ironia para, em linhas gerais, comunicar aos leitores que ele, Antônio Prata, havia caído em si e se dado conta do quão injustas e eram as bandeiras defendidas pela esquerda brasileira a respeito dos direitos das minorias, por exemplo.
“Quando terroristas, gays, índios, quilombolas, vândalos, maconheiros e aborteiros tentam levar a nação para o abismo, ou os cidadãos de bem se unem, como na saudosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que nos salvou do comunismo e nos garantiu 20 anos de paz, ou nos preparemos para a barbárie. Se é que a barbárie já não começou… Veja as cotas, por exemplo…” Dizia o texto.
O caso de Guinada à Direita foi um episódio especial, na literatura da internet, para os amantes da ironia. A crônica gerou centenas de comentários, e sua maioria mostrava um total equívoco na interpretação do texto de Prata. “Quando escrevi estava enfurecido com uma espécie de moda que estava ser de direita. Qualquer coisa que acontecia era culpa da esquerda! Ser direita era moderninho! Resolvi então ridicularizar o discurso sendo mais escroto do que ele. Tentei ser pior do que a realidade! Disse que a culpa era das minorias, e fui de um preconceito tão ensandecido que jamais achei que alguém pudesse ler aquilo como verdade. Não consegui”.
Depois de centenas de mensagens “parabenizando-o” pela coragem de ter virado a casaca, Antonio Prata viu que a parada era séria e resolver se manifestar com um texto explicando que estava sendo irônico. O episódio fez com que o escritor se desse conta do quanto pode ser mal entendido e, a partir de então, não que se abstenha de escrever sobre determinado assunto, ou até mesmo de lançar mão da ironia, porém, passou a sinalizar quando ela ocorre.
“Sou contra comentário em textos na internet”
O último autor escalado para a pesquisa sobre a literatura na internet é Gregório Duvivier, que além de escritor é ator, humorista, roteirista e poeta. Gregório tem uma relação bastante peculiar com os leitores, suas postagens no site da Folha de São Paulo, ou mesmo em seu Facebook, recebem centenas de comentários, que, na opinião dele, são completamente dispensáveis.
Para ele, o espaço para comentários logo abaixo da crônica faz dela uma obra aberta. É como se as impressões manifestadas por cada leitor fossem uma espécie de continuação do texto.
“Sou contra comentário em internet. Acho que artigos e crônicas não tinham que ter comentários. Porque eu acho que o lugar de comentários é na seção dos leitores. Quando você lê um texto não tem que saber o que todo mundo achou ao lê-lo.Você vai comprar Os Lusíadas, não tem comentários lá, ‘ah a parte tal é chata’. Imagina se em todo livro tivesse as impressões de todo mundo que leu na aba.”
Por conta de suas pautas progressistas, como por exemplo defender a descriminalização da maconha ou do aborto, Gregório acumulou tanto admiradores quanto haters. O cronista passava um bom tempo lendo e respondendo as manifestações de amor e ódio. Até que percebeu que perdia tempo e saúde com isso. “Hoje tenho uma funcionária que responde o Facebook e eventualmente modera opiniões de ódio, crime, curte os comentários mais legais, modera e responde por mim”.
Ódio não interessa. Amor demais também não
Da mesma forma que a apologia ao fascismo não interessa a Gregório, o amor em demasia também não. Na opinião do autor, isso só atrapalha o fluxo de criatividade.
“Não quero saber de pessoas me xingando, também não quero saber das pessoas me amando, dizendo casa comigo. Não me acrescenta nada. As mensagens são ou quero que você morra ou casa comigo; Nenhum dos dois me interessa, nem casar, nem morrer por quem eu nem conheço. Mais um motivo para não ler”.
Para Duvivier, é preciso ter cautela com a literatura na internet, principalmente no caso de escritores, para que tudo não vire uma eterna busca por likes e lacração.
“Tem um artigo legal que eu não li (…) sobre a dopamina, que seria o hormônio da internet. É o hormônio da recompensa. É o biscroc do cachorro. Te elogiam: ‘ah parabéns pelo texto’ e isso te dá uma descarga da dopamina. Antigamente você tinha isso uma vez por semana, uma vez por mês. E hoje com a internet você tem doses cavalares por dia. Então no fundo, o vício da internet é um vício por dopamina, por ser aprovado, ser aceito, ser curtido”.
Nada será como antes
Até meados dos anos 1990 a imagem que nos acometia quando pensávamos em escritores era a de sujeitos isolados em seus recintos, exilados em seus próprios sentimentos, lembranças e criações. Na companhia de máquina de escrever, cigarros e café, discorriam seus romances sem estabelecer nenhum tipo de interlocução com leitores.
Depois enviavam manuscritos a dezenas de editoras e aguardavam ansiosamente por respostas. Se a obra caísse nas graças de alguma editora e fosse publicada, leitores tinham a opção de enviar cartas à caixa postal da editora e, assim, instaurar algum contato com o escritor.
A internet é o futuro, ainda (e sempre) em construção, em que pessoas comuns que até então eram espectadoras passivas da realidade– protagonizada por uns, narrada por outros e divulgada (quando divulgada) pelas grandes corporações midiáticas – percebem-se, subitamente, transformadas em agentes ativos, capazes de mobilizar e produzir fatos, de eles próprios serem narradores da história que vivem e manifestar suas impressões sobre aquilo que leem.
Estamos diante de um marco na literatura e nas relações sociais, a internet, se bem usada (ainda estamos aprendendo o que isso quer dizer), democratiza a informação, a cultura, e a possibilidade de ser lido.
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