Como não poderia deixar de ser, a cena do menino roubando a moto de um homem na Zona Leste sendo filmada em primeira pessoa ganhou o Brasil e todos os destaques de jornais, desde aqueles que escorrem tragédias por todos os furos até os mais comedidos.
Ainda que os meios de comunicação fossem inocentes, ganhariam muita atenção do público só pelo ar dramático que a cena promove. Mas a espetacularização contribuiu ainda mais para o frenesi de desejo de vingança que ocupou as bocas e mãos inquietas em bares e redes sociais. Essas últimas, por sinal, dão mostras de que somos capazes de nos comportar como Marcelo Resende com unha encravada e sapato alemão apertado em alguns momentos, exalando ódio, mau-humor e moralismo.
Mas se as redes sociais derramam a força do julgo sobre os ladrões envolvidos no caso, não serei eu quem vai apedrejar qualquer um dos lados. É tão complexo entender o caso que todas as análises moralistas devem ser pensadas e repensadas exaustivamente.
Vou começar como promotor da acusação para que não venha à cabeça do leitor aquele pensamento entediado de “Xi, lá vem aquele papo de direitos humanos, de novo!”. Pois bem. É absolutamente compreensível o ódio do brasileiro de quem se vê num fliperama da vida real, com um três oitão apontado em sua cara, tendo seu pertence sendo levado por um jovem que atende a todos os estereótipos da criminalidade: crioulo, com o boné de aba reta virado para trás, levemente preso sobre o topo da cabeça e o óculos Juliet espelhado, que reflete o terror da vítima para que ela mesmo se espante ainda mais.
Com a força que uma imagem daquelas possui, o sentimento era que aquele menino havia assaltado e apontado a arma na cabeça de todos os milhões de brasileiros que assistiram às imagens. Até o mais canônico defensor dos direitos humanos sentiria ódio. O linchamento veio com a ação do policial, baleando por duas vezes o rapaz em uma cena hollywoodiana, tal como no filme 16 quadras, carecendo apenas de um enquadramento mais apropriado. Mas, nesse caso, Mos Def não parecia tão simpático aos olhos do público.
Porém, tão complicado como absolver o rapaz de Juliet é culpá-lo. A solução seria resolver todas as questões desarranjadas na sociedade. Isso livraria o menino do crime? A população brasileira respondeu indiretamente, em uma pesquisa publicada no último dia 14 pela Folha de S.Paulo. Os dados apontam que 61% da população acredita que as pessoas cometem crimes porque são más. Isso coloca o criminoso sobre o julgo não só da lei fria, mas também dos valores morais.
Mas fato é que os números pesam contra esse senso comum, como aponta a conclusão de um estudo realizado pela PUC, em 2012, intitulado A Renda, desigualdade e criminalidade no Brasil: Uma análise empírica. “A criminalidade no Brasil é muito sensível às questões sociais ligadas à renda, pobreza e desigualdade e pouco sensível à repressão através dos aparelhos de segurança pública do Estado, pelo menos na forma que se encontram”, afirmou o doutorando Karlo Marques Junior após uma avaliação dos dados da violência em todo o território nacional.
Quer dizer, aquele assunto que conhecemos bem, que a repressão não garante a segurança sem medidas que cerceiem a criminalidade em sua raiz, continua valendo, apesar do alvoroço que causa um policial atirando em um bandido em meio a uma via importante de São Paulo. Parece que em momentos de ódio coletivo como esse ignoramos a ciência dos dados.
Mas vou escapar do debate exaustivo sobre a culpa e absolvição do garoto baleado. Esse cenário aponta que o que mais tem assustado a população de classe média, grande consumidora dos telejornais e das redes sociais, é o aumento da violência contra ela. E aí talvez esteja a questão principal a ser levantada. Para entender a guerra urbana entre a classe baixa e a classe média devemos encarar o crime como um modo de vida, uma profissão, independente das questões morais envolvidas.
O crime possui seus especialistas, aqueles no estilo Jesse James, que poderiam assaltar o homem mais poderoso da cidade e todos os bancos da região em uma empreitada de apenas uma tarde. A questão é que, hoje, os homens que acumulam riquezas incomensuráveis são também aqueles que possuem mansões com características de forte-apache, soldados de terno e gravata bem armados e fones na orelha, pagos por CLT, matilhas de cães treinados, carros blindados e aparelhos eletrônicos capazes de identificar qualquer tipo de suspeita. Tudo isso, tornou o conhecimento de Jesse James obsoleto. Um Davi contra Golias sem a interferência divina.
O mercado do crime de alta periculosidade entrou em recessão. Os especialistas estão sem oportunidades de trabalho nessas empresas de alto escalão – o crime contra a elite AAA. As ofertas de trabalho são menos vantajosas: bicos roubando veículos nas ruas ou carteiras e joias em restaurantes, até mesmo furtando celulares em ônibus e metrôs. Só de vez em quando surge uma boquinha mais farta em um condomínio de luxo.
Como um economista na Grécia, no Brasil um ladrão de rua PhD (não os de terno, gravata e firma reconhecida) reclamaria da falta de oportunidades em se dar realmente bem. Se as portas giratórias reduzem o número de bancos assaltados, se os homens muito ricos são inalcançáveis, se os sistemas de grandes conglomerados empresariais são intransponíveis, o criminoso abocanhará o serviço possível – os atentados à classe média.
É nessa guerra cotidiana que vemos classes subalternas se engalfinhando, em um cotidiano de violência, ódio e preconceito. Enquanto os que realmente se beneficiam de uma sociedade injusta sentam em suas poltronas almofadadas no alto das torres de vidro dos centros financeiros. Existe sim uma guerra no Brasil, falta reconhecermos a posição dos reis e das rainhas enquanto os peões se digladiam.
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