O incidente na Praça Roosevelt me fez repensar de algo que uma conversa de Facebook me fez pensar. Aproveitei que se tratava de um daqueles dias quando que preciso me afogar em The Who. Ao invés de encaixar os fones no ouvido, fiz melhor: saciei meus desejos musicais enquanto reduzia minha lista de filmes para assistir antes de morrer. Bom negócio. A primeira resposta a Summer of Sam, (Spike Lee, 1999), é a trilha sonora impecável. Além disso, sagrou-se por ultrapassar os limites da batalha entre negros e brancos nos Estados Unidos, expondo as diversas facetas da discriminação no país.
Geralmente, uma direção de fotografia não menos que ‘exigente’ é suficiente pra me agradar. Mas quando conciliada a um roteiro audacioso, tem jeito não: é paixão na certa. Spike Lee parece ter divido as principais instituições sociais do final dos anos 70 e conectado-as minuciosamente sobre a atividade de um Serial Killer que, ao aterrorizar a população, igualava todos os americanos. Do CBGB ao Studio 54, da comunidade de carcamanos italianos aos negros. O assassino só é o foco central do enredo enquanto gera distintas observações pelos enquadramentos da sociedade nova-iorquina.
O verão nova-iorquino de 1977 criou recordações além de seus record’osos índices de temperatura. O mais famoso Serial Killer da história, David Berkowitz – The Son of San – caçava casais pelos carros que preenchiam a noite do Queens. Além dos bilhetes deixados em cada cena de crime, Berkowitz mantinha outro padrão: disparava exclusivamente em mulheres de cabelos castanhos com seu .44. Quando o principal suspeito foi capturado pelo FBI, alegou que estaria cumprindo ordens provindas de um cachorro, possuído por Satã, que latia ininterruptamente aos ouvidos de Berkowitz.
Paralelamente, Lee apresenta o dúbio casamento entre Vinny, (John Leguizamo), um cabeleireiro italiano católico e promíscuo, e Dionna, (Mira Sorvino), uma pseudobeata tentando expandir sua sexualidade para cessar as traições do marido. Vinny, um entusiasta da sodomia que não admitia receber sexo oral de sua esposa, acreditava fervorosamente que seus impulsos libidinosos se justificam por uma possessão satânica.
O cabeleireiro é amigo de infância de Richie, (Adrien Brody), um punk que amedronta a vizinhança com seu visual agressivo – um contraste à sua personalidade gentil e consciente. Richie é o outsider, está fora dos padrões aceitos. O habitat degradado por onde trafega engloba boates masculinas, onde atua como stripper, e garagens suburbanas lotadas por bandas punks. Curiosamente, figura como o único reduto de ética da comunidade e, ao observar criticamente as discrepâncias morais a sua volta e questionar o status quo, é condenado como subversivo pelos ‘provedores da lei’ – que, no filme, são representados pela Máfia Italiana. O personagem ainda é responsável por aquela que seria uma das passagens mais chocantes do filme; após ser expulso de um restaurante do bairro devido a sua coleira de spikes, Richie é questionado por Vinny: “Por que diabos você está vestindo uma coleira de cachorro no pescoço?”. Richie é direto: “Todo mundo está usando uma coleira, o tempo todo”.
Os anos 70 eram, de fato, tempos de mudança como afirmava o Presidente Nixon: a segregação não era mais constitucionalizada – fato que não a fez menos obrigatória. A rigidez era agora levantada por um estruturalismo político que contemplava desigualmente a população. A corrupção desse cenário incomodava e abria espaço à expansão de um imaginário coletivo objetivado por alterações substanciais nas relações de poder. A conformação da contra-cultura que emerge da podridão nada mais é que uma resposta às barreiras culturais provindas de um modelo de valores decadente, incapaz de dialogar com o progresso diário das novas ideias. O super-ego projetado no julgamento social barra esse progresso e os cidadãos que só conseguem se libertar dessas amarras quando ninguém mais pode os observar – e, consequentemente, julgar: um verdadeiro manual da hipocrisia.
Hipocrisia esta que se resgata no abuso de poder quando não há poder legítimo, provindo de uma aceitação integral a submissão a um órgão maior responsável por promover justiça e segurança a TODOS. A eliminação das ‘bactérias da sociedade’ é um grito tão retrógrado quanto à generalização dos objetos subversivos a lei de cada período. Aos olhos dos repressores, a única funcionalidade desse grupo é servir como exemplo de eliminação. Caso haja um desequilíbrio entre objetivo/objeto nessa dialética, há embate. Há 30 anos, Richie foi espancado por ser quem era; há 3 dias, skatistas foram espancados pelo mesmo motivo no centro de São Paulo. Prova de que a hipocrisia é perene ao tempo e à história. O grito discriminatório no Brasil de hoje é engasgado – o que não faz do skatista menos marginal perante o julgo da parcela conservadora e estagnada que coexiste na sociedade que tentamos empurrar pra frente. Estranho pensar que são essas mesmas pessoas que dizem precisar se manter em constante atualização – não seria esse o ritmo que seus ideais deveriam seguir?
Os discursos finais e iniciais do filme tentam demonstrar as evoluções durante o período de tempo em questão, a ‘mudança’ que promovemos. Acredito que seja uma ironia do diretor, que deixa evidente estarmos vivendo um patamar de moralidade de outrora. Essa é a cara do conservadorismo: a negação de que a sociedade seja uma célula viva, em constante transformação.
Mas essa diferença temporal pode também ser benéfica: há 30 anos atrás somente um lado, polarizado, tinha voz. A comunicação do século XXI permite a ciência integral dos fatos E aí, continuaremos calados?
Uma homenagem à ex-prefeita de São Paulo, Luiza Erundina.
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