Filmes sobre crianças para não-crianças “Parte 2”, é a continuação da primeira parte que mostramos em dezembro de 2012. Aqui mais dez filmes, alguns deles clássicos da história do cinema, contando a história de jovens que invariavelmente enfrentam problemas, descobrem amores, superam obstáculos, independente de final feliz ou não. O certo é que virá uma terceira parte, quem sabe uma quarta. Não faltam filmes feitos com arte e respeito sobre as crianças. Ainda aqui na Soul Art confira a matéria sobre A Indomável Sonhadora e A elegância do Porco-espinho, também sobre essa mesma temática.
Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups) – François Truffaut – França – 1959
Faltar às aulas para ir ao cinema, quase incendiar sua casa, pegar a mãe na rua com um amante, plagiar Balzac, apanhar do padrasto, morar na rua, roubar uma máquina de escrever, ser preso: estas e outras tantas situações dramáticas compõem a vida de Antonie Doinel, um garoto de 14 anos que vive com sua mãe e o padrasto num pobre apartamento em Paris.
Clássico absoluto do cinema, foi o primeiro longa-metragem de François Truffaut, um registro semi-biográfico de sua adolescência; foi também seu maior sucesso de público. Antonie, interpretado pelo ator Jean-Pierre Léaud, reapareceria em diversos filmes do diretor, e seria inclusive apontado como seu alter-ego.
Um filme que retrata muito bem como uma sociedade pode distorcer a vida de um jovem que, sem o apoio dos pais, fica à mercê das instituições, estas, geralmente preocupadas em controlar e punir.
Ladrão de Crianças (Il Ladro di Bambini) – Gianni Amelio – Itália – 1992
Rosetta é uma garota de 11 anos, que é obrigada a se prostituir a mando de sua própria mãe para sustento da família. Mas a garota e seu irmão caçula, Luciano, são retirados de casa pela polícia. O encarregado de conduzi-los à alguma instituição de adoção é Antônio, um policial novato de 25 anos. As coisas se tornam difíceis, já que lugar algum aceita Rosetta por causa de seu histórico.
Gianni Amelio é muito sensível ao filmar suas personagens, sem pressa para desvendar seus sentimentos. As longas viagens pela Itália desenvolvem conflitos e compreensões de cada um dos participantes nessa jornada. É preciso criar um significado para viver num presente de rejeições e um futuro sem perspectivas.
A Fita Branca (Das weiße Band) – Michael Haneke – Áustria / Alemanha – 2009
Michael Haneke é um diretor duro com o espectador. Tento me lembrar sobre algum humor em seus filmes e não me lembro. O diretor do consagrado Amor (2012), definiu o tema de seu filme anterior como sendo sobre “a origem de todo tipo de terrorismo, seja ele de natureza política ou religiosa”. Eis A fita branca, um filme sobre crianças e adolescentes de um coral num vilarejo alemão às vésperas da Primeira Grande Guerra, que são comandados numa linha dura, altamente punitiva e violenta pelos adultos do lugar, tudo em nome da obediência, moral e bons costumes. Logicamente todos condicionados à manutenção de algum tipo de poder, mas que não se eterniza e em algum momento rompe.
Adeus, Meninos (Au Revoir Les Enfants) – Louis Malle – França – 1987
Louis Malle também filmou suas lembranças de adolescente. Neste filme ele nos conta fatos vividos numa escola católica nos anos da Segunda Grande Guerra naquela França ocupada pelos nazistas. Narra a amizade entre Julien, aluno da escola e Jean, o recém-chegado, que é introvertido e parece guardar um segredo muito sério.
O filme mostra o que era a vida dos adolescentes e crianças (todos homens) nesse tipo de instituição. A peraltice rola solta durante todo o filme, para desespero do padre Jean; mas o clima vai ficando pesado e tenso com o tempo por causa do doentio policiamento nazista e das possíveis consequências para alguns alunos da escola.
Fanny e Alexandre (Fanny och Alexander) – Ingmar Bergman – Suécia – 1982
Ingmar Bergman também nos mostra um filme onde há a presença forte da autoridade na vida de um casal de irmãos, que é obrigado a sair da casa da avó e viver com um novo padastro, (um senhor extremamente religioso) com quem a mãe do casal se casa após a morte do marido numa festa de natal de sua família. O garoto Alexandre vive perturbado pela visão do espírito do pai e tão logo vai para a nova casa, começa a visualizar também a presença da ex-esposa e das filhas do homem, que morreram ao tentar fugir dele.
Este é um dos filmes mais marcantes do mestre sueco.
Deixa Ela Entrar – (Låt Den Rätte Komma In) – Tomas Alfredson – Suécia – 2008
Baseado no livro do escritor John Ajvide Lindqvist, o filme conta a estranha relação entre um garoto de 12 anos de idade chamado Oskar e uma garota, sua vizinha, chamada Eli. O garoto sofre bullying na escola e a garota aos poucos vai se tornando a única pessoa com quem Oskar pode manter uma relação de confiança. Mas Eli, que mora com um senhor, é na verdade um vampiro castrado há mais de 200 anos, e que precisa de sangue humano para sobreviver.
Distante de qualquer filme sobre vampiros já produzidos, este tem um tom melancólico como a paisagem da gelada Suécia. O preconceito e a violência se misturam nas vidas dos garotos quase sempre colocados em espaços vazios como se não houvesse fim. A solidão une Eli e Oskar num amor mútuo que se torna a única saída para suportar seus sofrimentos.
A Canção da Estrada – (Pather Panchali) – Satyajit Ray – Índia – 1955
Este é o primeiro filme da chamada “Trilogia de Apu”, do diretor indiano Satyajit Ray, onde acompanhamos a história do pequeno Apu, que vive com seus pais, sua irmã e uma tia muito idosa num lugarejo pobre da Índia. Esqueça a tal Bollywood com seus musicais e sua visão encantada. Aqui está um filme sobre os pobres e sua luta pela sobrevivência numa sociedade que distinguia seus integrantes por meio de castas (ainda no interior indiano existe esta prática já extinguida pela Constituição).
A família Brahmin é mantida pelo pai Harihar, que leva a vida como sacerdote mas ganha uma miséria, e sonha em se tornar autor de teatro e poeta. A mãe, Sarbojaya, aguenta o monitoramento da tia Indir, e as traquinagens de Apu e de sua irmã Durga, que rouba frutas do vizinho, o que lhe causa problemas na comunidade, que a acusa de ser uma ladra. A família recebe alguma ajuda de amigos e parentes.
O belo filme de Satyajit, provavelmente o melhor filme indiano de todos os tempos, nos aproxima de uma cultura muito diferente da nossa, mas mesmo assim nos apresenta temas universais como a família, a amizade, a pobreza, a luta pela sobrevivência, a morte, o respeito. A trilha sonora fica por conta da cítara de Ravi Shankar, que tocou com os Beatles, pai da cantora Norah Jones e que faleceu há poucos meses, deixando uma obra extensa e importante.
Os dois outros filmes que formam a trilogia são:
O invencível (1956), onde Apu é um adolescente, e O mundo de Apu (1959), já um adulto. Também filmes belos com as características de cada fase da vida do herói por sua jornada tortuosa.
Uma vida nova em folha – (Yeo-Haeng-Ja) – Ounie Lecomte – Coreia do Sul – 2009
Jin-hee adora andar de bicicleta com seu pai, parece ter uma boa vida, até o dia em que ele a leva para um orfanato de freiras e vai embora. A pequena tem que se virar para se adaptar com as outras meninas e a rotina do orfanato. Enquanto isso, ela espera pela volta de seu pai, e entra em depressão (tenta se enterrar). Faz amizade com uma garota de 12 anos, Sook-hee, e percebe que a adoção é a única saída daquele lugar.
A diretora Ounie Lecomte faz um filme delicado, mas apaixonante, principalmente pela atriz Sae-ron Kim, extremamente carismática. A história do filme se passa no ano de 1975.
Mouchette – (Mouchette) – Robert Bresson – França – 1967
Robert Bresson provavelmente teve influência sobre Michael Haneke em como se contar uma história de maneira seca e ao mesmo tempo cheia de significados e emoção. Mouchette mora com seu pai alcoólatra, sua mãe doente e cuida de seu irmão que é ainda um bebê. Muito pobre, vai para a escola com uma roupa suja; é maltratada pela professora e humilhada pelos colegas. Mesmo assim, como qualquer adolescente, procura se divertir, mas mesmo assim nada dá certo. As coisas só pioram, e a garota se perde naquela realidade estúpida.
Bresson cria um retrato da crueldade e da miséria humana como um destino que Mouchette não pode escapar, muito menos vencer.
A Feiticeira da Guerra – (Rebelle) – Kim Nguye – Canadá – 2012
São poucos os filmes que tratam sobre crianças africanas a não ser para mostrar a fome. Em A feiticeira da Guerra, Kim Nguye vai pelo caminho da total confusão política que leva a tantas guerras civis e que transformam a vida de milhões de pessoas naquele continente explorado e abandonado, onde em alguns locais a violência é atroz.
Komona é uma garota de 14 anos, que vive num vilarejo com seus pais. Num dia em que homens armados aparecem e matam quase todos no lugar, Komona é obrigada a matar os próprios pais com uma metralhadora. Levada pelos homens, é forçadamente integrada ao grupo para-militar. Mas ela consegue enxergar os mortos e logo é elevada e protegida como feiticeira do grupo. Komona faz amizade com um garoto, logo se apaixonam, mas jamais conseguirão levar uma vida normal fazendo parte daquele grupo e assim precisam fugir. Komona vê os espíritos de seus pais, e pelas lendas africanas, enquanto não houver um enterro digno e respeitoso, as almas não descansam. Aqui é possível fazer um paralelo com livro do escritor moçambicano Mia Couto, Terra Sonâmbula, onde uma das personagens também sofre com a alma do pai por não conseguir praticar um funeral tradicional, além de viver em meio às guerras civis em seu país.
O filme mesmo com toda a brutalidade que cerca as personagens, consegue grandes feitos poéticos e momentos oníricos, feito do diretor canadense Kim Nguye, que também tira atuações viscerais de seus atores (nem todos profissionais), principalmente de Rachel Mwanza, que levou um Urso de Ouro no festival de Berlin do ano passado.
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