Não gosto de adaptações de obras literárias para o palco, elas para mim são sempre decepcionantes, principalmente por que elas são o maior caça-níquel para “desespectadores”. Odeio por que se tratam de teatro-com-função, explico: grupos amadores ou semi-profissionais fazem espetáculos ruins crendo na garantia da presença de estudantes. A escolas compram o “pacote” e descarregam em caravana alunos do ensino médio no teatro. Para piorar, alunos mal educados (que odeiam a escola), nestas ocasiões são desrespeitosos com os atores no palco.
Para mim o teatro-com-função abdica a ser teatro, fazendo-se ilustração precária de uma obra já existente, é irmão da literatura-por-obrigação (praticada em todas as escolas do Brasil), aquela que não gera leitores, só pessoas que odeiam literatura. O teatro-com-função se trata, frequentemente, de uma peça feita para fisgar um público escolar ou de vestibular, aquele preguiçoso, que não quer ler a obra literária. Muitas vezes, essa é a primeira (e única) peça teatral que muitos verão na vida, e não raramente, são mal feitas, toscas, arrastadas, com atores amadores e sem preocupação de direção, cenografia, iluminação. É o desserviço máximo ao teatro, pois é esta visão “tosca” de teatro que se imprimirá na visão/memória destes “espectadores” de primeira viagem. Por isso odeio essas adaptações oportunistas, sem compromisso com a arte teatral ou com a obra literária.
As Sombras de Dom Casmurro – um recorte do clássico de Machado de Assis feito por Toni Brandão
Soube, porém, que era Marcos Damigo que iria executar, em forma de monólogo, a adaptação de duas obras machadianas clássicas. Damigo é irmão de uma colega querida, mas já o vi no palco e sei que ele é um ator sério, competente. Descubro também que dentro da Biblioteca Mario de Andrade há um teatro. Ótimo, faço caravana com amigos (Solange, Clarissa, Lucas e irmã Márcia, e vamos). O prédio da biblioteca é lindíssimo, chegamos no horário, a peça é gratuita. No salão de pé direito alto, pessoas se aglomeram, conversam com discrição e aproveitam para circular numa exposição de quadros contemporâneos. O ambiente me anima, idades variadas. O espaço é sério, o ator é sério e a obra seriíssima. Chega o horário, entramos em fila, sento com os amigos em fileira frente ao palco. Desligamos os celulares que assim, não tocarão ao longo da peça, quase não há pigarros.
Palco é templo. Estamos atentos. O ator entra em cena. O ator é um deus que constrói mundos na ágora. Casais com corpos entrelaçados. Há risos em tempo de risos. O palco é espaço do sagrado, máquina dos deuses, de grandeza e ilusão e da ilusão de grandeza. Somos crentes. Embarcamos.
A boa adaptação não exige fidelidade com o texto matriz, precisa transpor sim, sua essência.
Ao passar um romance para o palco temos a limitação do espaço, do tempo. A linguagem também é outra, contudo, ganha-se a voz, o gesto, a presença. O fato de Dom Casmurro ser um romance em primeira pessoa – e sobre a perspectiva do protagonista, Bento Santiago – já o habilita para conversão em monólogo dramático. E Toni Brandão sabe que o romance é também um elogio de Machado a Shakespeare, ao teatro, a uma sociedade que se encena, indivíduos desfilando com suas máscaras. Toni Brandão entende tudo, põe tudo isso no palco, por isso acerta, e acerta muito.
Começa por centrar no protagonista a quem pertence a voz do romance. Público, torna-se mais que testemunha, seu confidente. Daí, seu tom confessional, sua amargura, seu rancor e cinismo. Mantem em momentos pontuais outros personagens, que emprestam o corpo para dialogar com Bentinho, mas exclui todos os personagens que parecem acrescentar pouco ao que de fato expõe: o fracasso de sua história de amor com Capitolina, a hipótese da traição que carcome seu espírito, seu isolamento tacanho no final.
Dom Casmurro é a obra-prima de Machado de Assis, o maior escritor brasileiro do século 19. Quem passou pelo ensino médio, em tese, foi “obrigado” a ler/conhecer a obra, por isso, desnecessário seria explicar demasiadamente o enredo. Um erro. A educação brasileira é de uma deficiência notória, a memória também apaga o lido há tempos, e sendo a peça/teatro uma “obra autônoma” não deve depender de conhecimento prévio da obra matriz para fazer sentido. A adaptação que Luiz Fernando Carvalho para Globo, na minissérie Capitu, apesar dos atores e dos recursos milionários foi um erro retumbante, pois – do mesmo modo que fizera com A pedra do reino, de Suassuna – o diretor fracassa já que sua minissérie exigia que o espectador conhecesse previamente a obra. Sua adaptação era incompreensível, não emocionava, gritava beleza em figurinos e falas, mas não comunicava. As sombras de Dom Casmurro quase cai nisto.
A peça tem começo confuso que poderia ser ajustado, pois falta clareza na introdução do enredo e da circunstância. A peça não mostra o quanto a situação de Bentinho é tensa, ele está destinado ao seminário por conta de uma promessa. Isso é dito sem força, sem peso. E não se mostra claro que Capitu faz com que o garoto se alie a José Dias para conseguir livrar-se do seminário, uma estratégia que dá certo e que possibilita que no futuro eles se casem. A cena do “penteamento” dos cabelos e do beijo, feito com uma echarpe, fica também pouco claro. Quase tudo isso está lá, mas no início faltou desenvolver esse dado de tensão e ameaça com mais clareza, para fazer o espectador entender o que os impede de ficar juntos para que torçamos pelo casal. Encenada no monólogo, a fala capciosa de Capitu, que na obra insinua “transar” com Bentinho como estratégia para que sua família se veja obrigada a reparar o “erro”, uma aula machadiana de não-dito, é encenada como se fosse só um capricho juvenil e perde a força. Principalmente, faz com que o espectador não perceba o quanto Capitu é precoce, esperta, audaciosa, infinitamente mais “mulher” do que um Bentinho ainda “ingênuo”.
Marcos Damigo, contudo, é um ator cheio de recursos. O texto sintetiza o livro botando na fala as digressões e diálogos do próprio Machado. Às vezes o texto soa duro, inapreensível no seu português à lusitana, tão longe – no tempo, – das frases curtas da modernidade. Mas Damigo é competente, aplica-lhe nuances, é pródigo em gestos, tem um trabalho corporal fabuloso, uma voz potente cheia de nuances, tudo que permite superar as limitações do palco onde se apresenta. Digo, por que não há cenário, os artefatos de cena são mínimos. O cenário inexiste, acompanha-o uma trilha sonora soa sem camadas, mas que serve bem à ambientação sombria e ao clima/tom soturno (também de mistério) que a diretora opta por pontuar o texto. A iluminação é precária, limitada pelos pobres recursos técnicos do pequeno teatro, mas o que possui é aproveitado criativamente, com um projeto simples, a lançar, por exemplo, no fundo da cena a figura grotesca de José Dias como uma sombra.
Bom teatro faz isso: ilumina o texto, e quando excelente (é o caso), revela novas camadas.
As sombras do título aqui se referem ao passado, aos fantasmas da memória que atormentam o protagonista. Mas por que o adaptador (ou diretor) optou por atormenta-lo com sombras/seus fantasmas e abdicar aquilo que é a força do romance: a dúvida sobre a traição ter ocorrido ou não. É uma escolha, por certo, mas ocasiona perdas.
Não senti no desfecho, por exemplo, o peso da dúvida que há no romance. Toda digressão do narrador do romance procura condenar Capitu, o que faz com que o romance se torne uma peça de acusação, cabendo ao leitor-juiz dizer a ele, finalmente, que sim, que ele foi traído e “agiu corretamente”, que não “danou sua vida” por conta de um ciúme doentio. Isso não é acessório, não há acaso em Machado de Assis, cada palavra tem peso, confere sentido. Bentinho diz e contradiz sua própria provas a cada capítulo, o que influi sobre o sentido do capítulo anterior, fazendo crescer a dúvida, a incerteza. Em Dom Casmurro estamos diante de um tribunal: Bento escapa ao sacerdócio para se formar em Direito, cabendo por isso em seu discurso a “falsa racionalidade” de um advogado de acusação, daquele que conhece os “fatos” e finge expô-los como se deram. Mas sabemos que não há imparcialidade em nenhum discurso, e Bentinho dispõe na ordem conveniente os fatos que lhe permitam justificar seus atos. E como sua obsessão é desvendar a esposa, não espanta que Capitu (sem direito à fala, a não ser aquela concedida pelo esposo ciumento que a narra em forma de livro), torne-se a real “protagonista” do romance.
A diretora Débora Debois, entretanto, entroniza a figura de Bento. Se Capitu o traiu ou não, pouco interessa. Bento é o centro desta peça, e quando Damigo encena a fala de José Dias que se distorce no fundo do palco projetado como uma sombra tortuosa, entendemos que José Dias é projeção da malícia e maledicência que já está no interior do garoto Bento, e que vai tomá-lo por completo até o desfecho, tornando-o Dom Casmurro: um crápula misantropo, resmungão, pessimista e um tanto cínico. José Dias é o Iago de Dom Casmurro, já que o romance se baseia na tragédia Otelo, de William Shakespeare. A peça é citada textualmente no romance, fazendo eco ao tema do ciúme, que no caso shakesperiano sabemos que não houve, e não sabemos o quanto realmente há de Desdêmona em Capitu.
Marcos Damigo impressiona no modo como sai do monólogo para representação dos duplos de modo claro. O diálogo de Bento e do colega Escobar, Bentinho e o filho e, principalmente, no diálogo final entre Capitu e Bentinho impera a tensão dramática da narrativa. Tudo ele faz com permuta de lugares, voltando as costas para plateia, duplicando vozes em diálogo, despindo e recolocando uma peça de figurino.
Quem conhece depois de repetidas leituras o romance, vai entender como o recorte do texto é preciso, já que pontua as passagens fundamentais, provas da traição seguidas de trechos que refutam certezas. O elogio da vida como teatro (que está dentro do próprio romance) ganha mais sentido, já que agora, tudo se faz explicitamente no palco. Funciona azeitado, bonito.
As sombras de Dom Casmurro é teatro mais que bom, grande teatro, pela adaptação inteligente e respeitosa (no limite das linguagens), na direção que entende tal encenação como desafio a ser traduzido de forma direta e elegante. Destaque-se a presença de um ator que não vacila um minuto, com força, expressão e talento para trazer, em uma hora e meia, para o presente, um Dom Casmurro nada chato, nada fácil, factível e demasiadamente humano.
As sombras de Dom Casmurro é uma aula de “como” levar ao palco uma obra literária: não reduzi-la à mera progressão de fatos, não simplificá-la (nem em linguagem) para torná-la mais pop e palatável, não convertê-la em mera ilustração para quem já leu a obra. Ou seja: ser autônoma, destacar nuances, iluminar o texto, fazer com que a gente queira voltar a ler Machado de Assis e a voltar, sempre que possível, ao teatro.
Tem interesse por literatura? Quer aprender mais, e se divertindo? Suas análises literárias nunca mais serão as mesmas depois de você ouvir o Professor Edu Arau. Assista “Ao Pé da Letra”.
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