FLEABAG, monólogo teatral que virou série roteirizada, produzida e protagonizada por Phoebe Waller-Bridge, trata dos dramas de uma jovem adulta em crise com seu fracasso pessoal: fracasso nos negócios, nos namoros, nas relações familiares.

 

Fleabag tem o ar patético de quem não sabe o que fazer com a liberdade, viciada em sexo, transita de modo errático entre pai, irmã, cunhado, madrasta e uns machos sonsos, movida por uma raiva introjetada de si e dos seus, todos aleijados emocionalmente. O termo “Fleabag,” em inglês, significa “saco de pulgas” e evoca a algo sujo, largado, relacionado a pessoas, tem sentido bem pejorativo, o equivalente ao nosso “cachorro-viralata.” Fleabag também soa como contração do nome da autora.

Para piorar, vive um duplo luto: da mãe, por câncer, da  melhor amiga, que tentou simular um suicídio numa pista de ciclismo, e acabou morrendo de fato. Trata-se portanto de um drama pessoal com um corrosivo tom entre o cômico e o sarcástico. A protagonista não nomeada ganhou do público o nome da própria série.

Dirigida por Tim Kirkby, a filmagem é inventiva, de planos curtos, câmera na mão que dá um ar despojado e documental da Londres atual (uma outra protagonista da série), edição dinâmica e trilha dissonante. A quebra da quarta parede é um plus na narrativa. A protagonista fixa a câmera e comenta impressões sobre seu presente imediato, faz referências e especulações, à maneira de um narrador machadiano; na segunda temporada esse recurso se converte em elemento revelador da instabilidade da personagem.

FLEABAG é composta de apenas duas temporadas, cada qual com seis episódios, cada qual de pouco mais de 25 minutos. Essa “economia” não a impediu de ser uma série altamente premiada por crítica e público. Isso se deve a sagacidade do seu roteiro, repleto de um cáustico olhar sobre o feminino, o feminismo, as relações familiares, afetivas, o trabalho e a sociedade britânica atual.

A impressão que tenho é que ela sintentiza a lógica do exame da mulher contemporânea que já fora feito em Sexy in The City e na série de filmes Brigitte Jones. Ela condensa o tom confessional e intimista centrando-se numa protagonista looser, elimina a “glamourização novaiorquina” com uma Londres classe média baixa, insere maior complexidade psicológica (e emocional) à protagonista, ao mesmo tempo que aprofunda no sarcasmo por meio do nonsense.

Menos esquemática, em FLEABAG há lances de quebra do realismo em muitas cenas, para revelar a interioridade conturbada da personagem (dança experimental no metrô, raposas que perseguem um padre etc.) e do grotesco e bizarro das relações humanas e interações sociais.


De primeiro momento surpreende o despudor com que Fleabag trata do sexo (um tema centro da série), posteriormente, se impõe a figura da anti-heroína – sua inconstância, imaturidade contumaz, irresponsabilidade constante – diante de vários personagens tão ou mais emocionalmente confusos e instáveis quanto ela.

A relação de mais proximidade de Fleabag é com a irmã extressadíssima, empresária workaholic bem sucedida, mas infeliz num casamento com um sujeito vulgar e inútil. A relação entre ambas é de amor e de ódio, de aversão e dependência de ambos os lados. O pai é incapaz de articular uma frase completa com as filhas, parece desconfortável em seu papel, é fraco e dono de uma culpa introjetada por ter se casado com a madrinha das filhas.

De modo brilhante, Olivia Colman interpreta a madrasta passivo agressiva que deprecia tudo que se relaciona à enteada, vilã espezinhada e reativa sempre com um sorriso e tom delicado na voz. A melhor amiga de Fleabag pontua interstícios da narrativa em flashbacks variados. Aliás, a narrativa é inventivamente pontuada por inserts de cenas desconexas, que ao fim da temporada revelam um segredo oculto (catalizador de toda crise) da protagonista.

O ex-namorado carente ao nível da indigência, o boytoy para sexo, gato e um tanto autista, um paquera boçal de dentes horrendos e o cunhado escrotíssimo, os homens são zero à esquerda na trama até a entrada de Andrew Scott, que passa a integrar a segunda temporada, vivendo um padre católico por quem Fleabag se apaixona.

FLEABAG, com sua protagonista cínica de carisma monumental, falha e apaixonante é um exemplo do quanto há por se fazer ao falar de amor, de realização, do inapreensível do feminino.

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