CityLights_AndreVicentini

Foto: Andre Vicentini | Texto: Robson Alkmim

Saí de casa com algumas notas de sonhos nos bolsos e um sorriso emprestado de minha imaginação. A lua cantava redonda brilhante sobre o fundo negro infinito. Eram dez e pouco da noite, fui para a vida para não ficar encaixotado num quarto vazio de emoções. Não tinha destino certo, logo, deixei a bússola da intuição apontar sua agulha e segui as luzes das ruas, dos carros, dos bares e das estrelas.

Andar à noite sempre foi meu grande prazer. Sinto-me instigado a descobrir quem é cada indivíduo que cruza meu caminho. A luz do dia esgota essa curiosidade a ponto de me causar profunda estafa mental, as pessoas durante o dia se mostram como são. Não vejo graça. À noite, meu olhar se aprofunda, curiosamente procurando algum segredo nas profundezas daqueles seres cinzas andando nas calçadas, dentro dos carros, pendurados nas janelas dos prédios, à espera na fila da balada e naqueles que dormem no chão gelado e áspero. O jogo entre luzes difusas e sombras me causa profunda impressão e me diverte. Nada é uniforme, tudo se multiplica a ponto de confundir, ah, como é boa essa confusão!

O centro da cidade era minha fonte de amor pela noite. Sentia, naquele dia, que eu transgredia o meu nível normal de ousadia, que nunca fora grande coisa, e entrei num bar aleatório como se jogasse dados numa aposta comigo mesmo. Eu observava o movimento dos corpos, das vozes e dos olhares, quase sempre pessoas mais novas do que eu, quinze ou vinte anos talvez, não, quase trinta, ainda curiosas pela noite que começava, entorpecidas de desejos inocentes em suas concepções, como cachorrinhos soltos num parque, mas eu era um lobo, vagando para me alimentar e sobreviver, a idade pesava. Pedi uma cerveja ao barman que já parecia cansado antes da meia-noite apesar de ser um homem jovem, talvez tivesse algum problema em casa, eu pensei.

Fiquei em pé próximo ao balcão espreitando um lugar vago, mas o bar estava lotado, muita gente entrava via o volume de gente dava meia-volta e saía. Os cheiros das frutas e frituras e cigarros e cervejas se misturavam em minha cabeça, perfume noturno já tantas vezes experimentado.

Mas eu precisava sair. Aquele povo, em sua claridade, começava a se mostrar demasiadamente irritante e eu precisava de imaginação. É sempre assim nesses lugares, vejo uma moça que me parece interessante (aqui não colocarei julgamentos e preferências pessoais), e logo ela começa a se dissolver em seus movimentos e sons. Perco a sensação de descoberta como se ela se parecesse com a amiga ao lado ou com a outra moça de outra mesa, a claridade as tornam equilibradas esteticamente.

Certa vez, contei isso a um amigo, e ele me chamou de louco antissocial, que seja! Não sou perigoso, esse é meu problema.

Saí do bar meio bêbado, desci e subi ruas, cruzei avenidas, virei esquinas e meus pensamentos martelavam sobre um único ponto: uma mulher, uma companhia. Não de qualquer mulher, mas aquela que nunca tive, como aquela flor que só existe em determinados lugares, numa montanha, por exemplo, naquelas terras oníricas em que minha imaginação planava. O lobo estava faminto havia anos.

Meus pés doíam dentro dos sapatos deteriorados e sentia frio sob minha roupa fora de moda. Entre a luz de um poste e outro, na penumbra, eu baixa meu olhar, e quando passava por debaixo de um poste, erguia meu rosto, vejam, sou eu, alguém por baixo dessa barba espessa, com esse ralo cabelo cinza, que enxerga longe com os olhos encovados pela insônia, e a boca trêmula num sorriso sem alegria. Alguém que precisa de amor. Eu não era alguém para se prestar a atenção realmente pela minha transparência, mas naquele dia algo diferente aconteceu…

Uma mulher, uma mulher veio até mim, enquanto eu parava para comprar um lanche num quiosque de cachorro-quente. Ela se aproximou, vestia calça jeans e um casaco negro, seus cabelos loiros esvoaçam a cada passo de seu salto alto, pude sentir um perfume forte que ela exalava antes que dedilhasse sobre meu ombro direito, lançando seus lábios vermelhos em minha orelha e dissesse que me amava. Fazia tantos anos que não ouvia aquela frase, ainda mais dita com suavidade e precisão por uma mulher tão bonita e robusta, que só pude pensar que ela havia me confundido, logo tive um leve acesso de revolta controlada. O vendedor de cachorro-quente ficou olhando para nós. Eu devo ter ficado da cor de um pimentão. A mulher se afastou e andou em direção à esquina, pensei em seguí-la e saber que havia acontecido, mas me contive quando a vi abordando um outro homem, praticando os mesmos trejeitos como uma atriz repetindo um exercício e logo depois sumindo ao virar a rua, deixando o outro homem talvez tão perplexo e decepcionado ou revoltado em tão pouco tempo que a melhor coisa era ir embora, continuar com seu trajeto. Eu fiz o mesmo, mas antes, perguntei ao vendedor de cachorro-quente se já havia visto aquela mulher, ele disse que não, ele me perguntou sobre o que ela havia falado, eu respondi que nada, absolutamente nada, ele também se decepcionou. A noite era fria para todos.

Durante toda a andança para casa, tive medo de reencontrar a mulher. E se a encontrasse, será que ela me reconheceria ou já nem se lembraria de mim ou do que falara? Sou esquecível e vivo só, é minha única certeza. Voltei para meu apartamento quase de manhã, bastante cansado e aliviado. Se no começo da história eu tinha sonhos e os bolsos cheios, logo depois, com bolsos vazios, tive pesadelos. Aquela mulher não somente me dizia que amava, mas que eu já a amara e a abandonara sob a luz de um poste numa noite em 1984. Minha primeira namorada, a única mulher que realmente me amou, se misturava ao corpo da mulher sob um manto vermelho de culpa e tristeza. Já me aconteceram muitas malucas na vida, mas a pior era dizer: Eu te amo. Sou um incorrigível.

A cidade grande sempre será jovem, somente nós envelhecemos. Dias depois, abandonei meu emprego e voltei para minha cidadezinha no interior, troquei as luzes artificiais de onde vivi durante quatro décadas e voltei para as luzes das estrelas, sem sonhos ou saudades, só com a calma e a lucidez da minha loucura que ainda me sobram. O lobo sabe onde quer morrer.

Quer receber nosso conteúdo?
[popup_anything id="11217"]