Sem título Por Andre Vicentini ☆

Foto: Andre Vicentini | Texto: Robson Alkmim

 

Na adolescência, veja bem, eu gostava de invadir casas abandonadas.

A primeira incursão numa casa começou acidentalmente, por pura zoeira e competição entre amigos. Perto da escola, eu descobri um casarão abandonado, com vidros estourados, paredes descascadas, porta de entrada arregaçada, mato no quintal, portão enferrujado, e o muro muito sujo com uma plaquinha vagabunda de vende-se. Um lugar que havia perdido sua glória, definitivamente.

Decidido a encarar tal aventura, chamei o povo que conhecia. Muitos amigos não toparam com medo de ter espíritos (a sério!) ou ladrões (razoável), outros ficaram ressabiados mas vieram. Combinamos o encontro num sábado às seis da manhã. Dos cinco caras que haviam me dado certeza da preciosa presença, somente dois apareceram: O Mosca, um moleque meio ruivo, o mais baixo da classe e o mais velho também; o Guiné, um garoto negro, alto, forte, jogador de basquete, e medroso pra porra; e o Resto, um pivete amarelo espinhento que não havia combinado nada e apareceu porque não tinha nada melhor pra fazer; ninguém objetou a sua vinda. Fiquei um pouco decepcionado, não quis mais que aquilo valesse algo em troca, somente o desafio de entrar naquele lugar, nenhum deles retrucou. Ah sim, eu era conhecido por Playboy, pois usava tênis sempre limpos, só por isso, nem caros eram. Não os sujava para não apanhar de minha mãe.

Voltando.

O sol nascente nos iluminava, o que poderia ser um problema se a polícia surgisse na esquina, ou se algum vizinho resolvesse abrir a janela de sua casa. Guiné serviu de escada para todos nós subirmos e pularmos o muro. Havia receio a cada movimento, a cada respiração, mesmo assim continuamos e rapidamente estávamos no quintal da casa. Seguimos lentamente, precisando os passos, pois havia muita sujeira, cacos de vidro, papéis, até sacos de lixo rasgados. Imaginamos que tipo de gente entrava ali, que tipo de gente fazia aquele tipo de coisa. Mosca tirou uma garrafa de vinho da mochila, bebeu quase metade num gole só e depois de arrotar nos ofereceu, nós bebemos, e o Resto tacou a garrafa na janela, fazendo aquele barulho oco de garrafa de plástico quando bate e rola. Nós nos tornávamos aquele tipo de gente.

A porta de entrada já estava quebrada úmida podre. Empurrei e ela arranhou o chão arrastando uma baita sujeira. O único barulho que ouvimos foi o de goteiras. Havia chovido na noite passada. Ao entrarmos, ainda mal iluminado, encontramos a cópia da aparência exterior, tudo podre, mas com alguns móveis, todos destruídos, nada merecia nem ao menos um restauro. Na verdade, Guiné, realmente assustado, não quis entrar, tiramos sarro dele, mas achamos melhor alguém ficar ali fora e vigiar.

A cada cômodo que entrávamos, íamos notando a degradação: os pisos soltos, cacos de vidro pelo chão, baratas e outros insetos tomavam aquela casa de aspecto morto. Ninguém mais seria louco de morar ali, tudo teria que ser demolido. Esperávamos que pelo menos a casa não resolvesse desabar sobre nós. Vimos camisinhas, maços de cigarros, tocos de velas, pichações, bolsas e carteiras vazias, incontáveis garrafas de bebidas e até um gato carcomido que jazia, pelo jeito, havia muito tempo.

Eu olhava para os garotos e eles não me pareciam impressionados. Fiquei fascinado por tudo que meus olhos percorriam. Na época meus pais entraram num processo de separação. Minha mãe enchia a cara todos os dias após meu pai sair de casa. Nós discutíamos, eu era filho único, vivia revoltado. Minha casa parecia se degradar a cada dia e pensei nela destruída, como a que acabava de conhecer. Ela incorporava a raiva que eu sentia. Seu cheiro horroroso de mofo, a umidade misturada à poeira, as manchas negras e as bolhas nas paredes, as madeiras retorcidas, isso tudo me encantou, senti-me distante, liberto dos problemas, quase numa relação de identidade com a podridão e a decomposição. Decidi que, se tivesse que morrer, seria numa casa abandonada. Ideia romântica para um coração adolescente cheio de ódio.

Após aquele dia, os garotos não me acompanharam mais, o que eu achei legal. Comecei a explorar a cidade, procurei por lugares abandonados, encontrei várias ex-residências, e até prédios vazios, quase sempre no centro da cidade. A cada novo local descoberto, uma chama de alegria se expandia em meu peito. Posso dizer que tudo era idêntico à primeira casa, com a diferença de haver mais ou menos objetos destruídos e mais ou menos tempo de desocupação. Eu sentia prazer em quebrar o que destruído estava. Meus tênis ganhavam sujeira.

Sim, encontrei pessoas. Boas e ruins. Conheci problemas que para mim eram inimagináveis. A pobreza extrema de quem não tem lugar para morar e invade um lugar não para diversão ou se isolar como eu, mas para sobreviver, sozinho ou em família. Quando convivi com aquelas vidas mais miseráveis, a minha, gradativamente, foi deixando de ter a gravidade que eu supunha ter.

Entre os quinze e os dezessete anos minha vida foi essa, entre a minha dor interior e a dor de quem eu conhecia, ah, como cresci! Deixei aqueles ideais passados apodrecerem e abandonei tudo quando minha mãe decidiu parar de beber, porque havia encontrado um novo amor. Não tive ciúmes, ela precisava, o cara era trabalhador e estão juntos até hoje. Não precisava mais me preocupar, tive carta branca para levar a vida adiante.

Eu moro sozinho, num apartamento tão limpo e brilhante que causa até comoção entre meus amigos. Mas quem disse que abandonei o hábito de visitar lugares abandonados? Agora eu os fotografo, conhecendo suas intimidades e suas histórias. Meu trabalho é de eternizá-los, pois logo não existirão. Capturo o que já foi feito para durar como a respiração e que agora é tão efêmero quanto um sopro.

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