Sem qualquer dúvida, o teatro pode beber de fontes diversas que não necessariamente a tradição. Quando o encenador americano Robert Wilson despontou no panorama internacional no fim dos anos 1960, trouxe consigo um modo revolucionário de fazer – e de encarar – o teatro, subvertendo a maneira de compreendê-lo ao desvincular a encenação do texto dramático e criar obras que surpreendiam pelo apelo visual. O rigor das marcações, a precisão dos gestos, o trabalho acurado de luz e som, o ritmo lento e distendido e o rompimento com uma narrativa tradicional em prol da plasticidade cênica se tornaram, gradativamente, suas marcas registradas.
Justamente por essa revolução proposta de Wilson, o crítico teatral Hans-Thies Lehmann usa na capa de seu influente Teatro pós-dramático, a montagem de Robert para Fábulas de La Fontaine e, não à toa, Lehmann o considera “o exemplo do teatro pós-dramático desde os anos 70”. Ainda que muito de seu propósito vanguardista já tenha sido assimilado por seus contemporâneos, Bob continua realizando espetáculos inquietantes.
Depois de apresentar A Ópera dos Três Vinténs (Bertolt Brecht), Lulu (Frank Wedekind) e Macbeth (Giuseppe Verdi) em palcos brasileiros, Robert desembarcou mais uma vez em São Paulo, no último mês de junho, com A Dama do Mar – texto da intelectual Susan Sontag (1933-2004) baseado no clássico do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906). Em 1998, Sontag escreveu uma adaptação do texto especialmente para Wilson, onde reduzia o número de personagens, estruturava a peça em mais monólogos do que diálogos e alterava o final, sempre carregadas de pessimismo – fatos esse que podemos explicar o talvez esquecimento da essência da obra de Ibsen.
Apesar de iluminar questões candentes do século 19, como a liberdade feminina e o livre arbítrio, a peça é considerada também como obra inaugural da fase simbolista de Ibsen. Em cada frase existe, para além do sentido imediato, um desdobramento místico, uma abertura para o mistério e o incompreensível – o que, mesmo com a plasticidade de Wilson, ainda é apresentado de maneira furtiva.
Diferente de suas encenações anteriores no Brasil, desta vez Bob Wilson escalou um elenco estritamente brasileiro – fato que pode ter dado mais calor à frieza mecânica do americano – trazendo grandes nomes do teatro nacional à cena como Lígia Cortez, Ondina Castilho, Bete Coelho e Helio Cicero. “Embora o texto e a arquitetura da cena não mudem de um país para o outro, a língua, as características culturais e a personalidade dos atores fazem diferença” conta Lígia. “Acredito que, nessa montagem, surgiram cores novas, inéditas na trajetória de Bob Wilson”.
Na versão sontagiana de A Dama do Mar, Ellida (encenada rotativamente por Ondina e Lígia) se casa com um amoroso viúvo (encenado por Helio Cicero) mas, entediada, não se esquece dos tempos em que viveu uma paixão à beira de uma praia. Junto a isso, ela também conquista o direito de escolher entre o casamento e a aventura, mas o faz de modo apático e acaba por corromper sua natureza. Deixa, contudo, de ser uma “dama do mar” para se converter em um tanque imóvel, como ela própria define.
Segundo a protagonista, liberdade é, como prevê seu marido, “uma faísca que se apaga antes mesmo que você possa gritar ‘veja aquele brilho!’ Um instante. No momento em que você o sente, é passado. A nova falta de liberdade já começou”. Para os atores da versão brasileira de A Dama do Mar, felizmente, liberdade parece ter outro significado.
Fotos: Luciano Romano/Reprodução
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