– Eu vou dar uma saída.
– Aonde você vai?
– Só tomar um ar lá fora. Já volto. Tá abafado aqui.
– Eu vou com você.
– Não.
Houve um constrangimento. Ele ia explicar que queria mesmo era ficar um pouco sozinho. Ela quase se traiu e perguntou por quê, mas entendeu. E, por isso, quase quis se desculpar: afinal, todos têm o direito de ficarem sós; que mal haveria em…
Não precisava. Os gestos espontâneos se encarregaram de esclarecer tudo. Num e noutro, mais uma vez, o diálogo se deu no silêncio. Tanto tempo juntos tornam desnecessários esclarecimentos e explicações.
–” Tá bom”. Foi um tanto envergonhada ainda que respondeu.
Ele foi saindo devagar do salão. Era a festa do Sukiaki, evento comum lá nas bandas do cinturão verde. Grandes mesas compridas, a gente toda sentada lado a lado, uma pretensa proximidade. Você mesmo prepara a comida repleta de vegetais, um pouco de carne e todos aqueles ingredientes orientais, cujos nomes caem no esquecimento, logo depois de se pronunciarem seus nomes. O barulho dos cozimentos vizinhos e aquele caldeirão de conversas ia se apequenando mais e mais até que ele estivesse já totalmente fora do ambiente. Atrás de si uma quase culpa: deixar as companhias daquele jeito não devia ser muito elegante. (mas de que jeito?) Se se vem junto, fica-se junto das pessoas com quem se chegou! Além disso, a mulher possivelmente estivesse desconfiada de que ele fosse ter um encontro furtivo com uma amante… oriental, talvez. Uma dessas mestiças lindas nossas, nas quais a brasilidade decora os traços das japonesas com sol e frescor.
Riu do pensamento surreal. Lembrou-se do colega, também quarentão, que lhe havia dito, recentemente:
–” E elas gostam de caras como nós, viu? Grisalhos… Elas ficam loucas!”
Uma bebida. Éh, ele precisava de uma bebida. Um chope, um vinho quente, uma embriaguez qualquer, uma solidão… Por que a solidão é uma escolha que incomoda tanto as pessoas? Pensou. Tomou um gole e outro. E mais um.
–” Mais um chope, por favor?” Já estava meio tonto: vantagem dos fracos para a bebida… a zonzeira boa. E suficiente.
– “Obrigada, senhor”. E entregou o copo com um sorriso desses, perigoso demais para um homem zonzo e vestido de solidão. “ E elas gostam de caras como nós…”, ouviu pelas paredes da alma. Sorriu de novo e se sentiu quase bonito. Um senhor distinto: um Sean Connery anglo-biritibense, do alto dos seus 1,64m.
Buscou um lugar mais reservado. Aquelas pessoas todas… era barulho demais. Saiu andando com a autoridade de quem sabe olhar para as pessoas. Sentia as pedras sob seus pés finos, adivinhando o frio que não se atrevia contra sua jaqueta de couro. Encontrou um lugarzinho bem reservado, ideal para se despir ainda mais. Queria sair de si. Sentir-se nu e olhar mais para dentro. Lembrou-se, então, de um exercício maluco: imaginar-se outra pessoa, fora de si, observando o que se faz… Era um livro,… do Osho, talvez… Sentou-se num beiral qualquer, uma estrutura de cimento mal acabada. Outro gole e um suspiro meio indecente então. Não havia ninguém por perto, não o bastante para notarem como eram observados, analisados, como ele próprio talvez fosse. Mais um gole e, de repente, se viu ali, diante de si mesmo, olhando a cena. Bem a sua frente, em pé, olhando longamente para ele mesmo. Lembrou-se, então, de vários escritores descrevendo cena semelhante: o Otto, o Braga, até o Bandeira.
Viu-se inteiramente. E se aproximou para o “diálogo mais sonhado”. Falaram e se entenderam e se seduziram, mantendo os diálogos que só daquele encontro poderiam advir. Olharam juntos para a festa e, no olhar, foram cúmplices perfeitos. Concordaram acerca da necessidade daquele alheamento e, como amigos antigos e separados, chegaram a cobrar um do outro por que da demora daquele despojamento tão intenso.
– Não sei. Covardia mesmo, acho…
– É. Eu sei.
Era melhor que o irmão inventado por décadas! Era real (!). Daquele encontro insular, um mar de diferenças diluídas, censuras sumidas, uma sinceridade, uma honestidade, um desejo, um tesão por si… uma comunhão consigo. E só.
Jogou o resto da bebida, que queria se lembrar por algum tempo ainda daquele contato com o amante, daquele orgasmo espectral na companhia boa que ele descobriu ser para si mesmo…
A alguns metros viu a mulher e seu aceno de compaixão e cuidados. A mão delicada, deixada no ar e aquele sorriso doce e preocupado tão conhecido, sussurrando ao longe se tudo estava bem.
– Eu vou ter de ir. Disseram juntos.
Sorriram um para o outro e, na cumplicidade derradeira, foram-se
Juntos também.
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