Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
(…)
É feia. Mas é flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Esse trecho de Drummnd do poema A flor e a náusea em A Rosa do Povo martelava minha cabeça a primeira vez que visitei o cursinho Cora Coralina. Era 2014 e o prédio recém ocupado em uma praça do bairro Bom Clima em Guarulhos ainda jazia com suas paredes desgastadas e janelas quebradas frutos do precedente abandono.
Uma praça qualquer, se não chamasse tanto a atenção que dentro daquele edifício algo novo e improvável ganhava forma. Carteiras de escola, um quadro negro fixado na parede e pelo vitral se viam, em pleno sábado a tarde, as cabeças pensando, as feições atentas dos estudantes na aula que acontecia naquele exato momento.
Uma praça de bairro onde crianças corriam, em meio ao mato, outras que chutavam bola no campo de futebol que reúnia (e ainda reúne) as agremiações dos bairros da região em jogos disputadíssimos aos fins de semana. Desse dia em diante o Cora Coralina nunca mais saíria da minha vida de professor. A história do cursinho se confunde um pouco a minha e a de muitos outros professores que por ali passaram ou que por ali ainda estão, por militância e resistência política ou simplesmente pela paixão por ensinar. Não raro ambos. A história do projeto também se confunde a história de mais de 230 alunos que por ali passaram nos ultimos cinco anos. E que para muitos estudantes foi a diferença entre uma entrada precoce no mercado ou o acesso a uma universidade pública.
O Cora (como é chamado pelos estudantes) desde seus primeiros passos em 2013 caminhou longa jornada até os meados deste ano de 2017. Surgiu das utopias de professores, em sua maioria advindos de universidades públicas, em pensar uma educação inclusiva, uma porta de entrada para os estudos e uma saída alternativa para o estudante que não tem como recorrer aos cursinhos comerciais para tentar a sorte no restrito mundo do vestibular.
Cinco anos depois da ocupação, feita a revelia dos poderes do estado como de costume e inicialmente sem apoio da prefeitura de Guarulhos. O cursinho passou por força de suas próprias pernas a existir de fato dentro da comunidade. A praça está mais viva, o prédio agora funcionalizado não tem mais os vitrais quebrados e as paredes receberam grafites. De onde vieram os escassos recursos? Vaquinha feita por organizadores e alunos. Comerciantes e moradores da região doaram a tinta, aliás, tudo que é feito por ali acontece assim: com recursos próprios, eventuais doações, rifas e muita persistência.
Estampa a faxada do prédio o perfil de Cora Coralina, poetisa e contista que batiza o cursinho, não há acidente em pensar que a figura matriarcal de Cora Coralina seja mero acaso.
“Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.” (Coralina, 1983)
Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, nasceu na cidade de Goiás em 1889, ano que um golpe militar derrubaria a monarquia e daria início ao Brasil republicano. Lançou seu primeiro livro Poemas dos Becos de Góias e Estórias Mais pouco depois de viver outro golpe militar, em 1965, já aos 75 anos de idade. Cora viveu ainda para ver a abertura política e o fim da ditadura militar, a aurora da democracia selaria seus dias de vida e Cora então faleceria aos 95 anos de idade em abril de 1985.
Deixou um legado. A poesia como ação política, como forma de resistência. Foi uma mulher a frente de seu tempo:
Sobrevivi, me recompondo aos
bocados, à dura compressão dos
rígidos preconceitos do passado.
Preconceitos de classe,
Preconceitos de cor e de família.
Preconceitos econômicos,
Férreos preconceitos sociais.
(Coralina, 1976)
Coincidência ou não, assim como a própria Coralina de carne e osso, é através da poesia, da arte e do ativismo que o cursinho continua existindo. Além dos recursos que saem dos bolsos dos próprios organizadores a principal fonte de financimanto que o curso tem acesso é através de um sarau que acontece anualmente. Para muitos artistas da região o Sarau Cora Coralina é uma das melhores oportunidades de divulgação de sua arte. O sarau reúne pessoas de todos os cantos da cidade e enche a praça da antiga portuguesinha de artistas, estudantes e curiosos. Bandas se apresentam no palco montado no centro da praça e o sarau tem um forte viés político e de militância.
O Mote deste ano é: 5 anos de Cora, 5 anos de luta!
A referência aos cinco anos de resistência é repetida com orgulho pelos alunos e professores que no início do projeto encontraram muitos entraves por parte do estado para estabelecer o cursinho no local que por fim seria sua sede. Corria a boca pequena que um empreendimento milionário seria alocado ali, por fim a ocupação venceu.
O sarau esse ano acontecerá dia 27 de maio a partir das 16h30.
Local: Rua José Lourenço Neves (AJUF/Portuguesinha) – Bom Clima – Guarulhos
Entrada: Livre.
“Se a educação sozinha, não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.” (Freire, 2000)
Uma flor nasceu no asfalto, em detrimento de todas as dificuldades ela florece mais um ano. Mais forte e mais vibrante. Auto gestão e democracia são as palavras centrais dentro do funcionamento orgânico do Cora. Tudo é deliberado democraticamente. A aula não fica apenas em sala de aula. Mas experienciada a partir do ponto de vista do próprio aluno enquanto sujeito ativo de sua própria realidade.
O acesso a cultura pode mudar a relação entre espaço público e comunidade e fortalecer a identidade do indivíduo enquanto ser social. Marcelo Stangari professor e organizador disse em entrevista cedida ao SOUL ART no mês de abril desse ano:
O Cora tem uma meta bem definida que é aprovar o aluno nos vestibulares mas isso não se passa sozinho, temos diversas discussões, debates e palestras que tratam de temas contemporâneos, por exemplo, desmilitarização da polícia, questão de gênero, sociedade e econômica. Então a formação que nós temos engloba aquela formação curricular do MEC mas ao mesmo tempo é voltada para uma formação cidadã. A pessoa compreender historicamente sua identidade, enquanto classe, gênero ou raça e ao mesmo tempo se sentir pertencente tanto ao ambiente do cursinho quanto a sociedade da qual ela faz parte.
Nesse mês de maio mais um tijolo será adicionado a essa construção de nossa identidade coletiva. Seja você também sujeito ativo de sua realidade. A cidadania se faz nas frentes de batalha que unem cultura e espaço público. Que incorporam de fato a democracia como elemento transgressor do poderes estabelicidos. Espaço onde podemos reafirmar nosso pacto enquanto sociedade organizada em busca de igual social.
Ta de bobeira no dia 27 de maio? Participe dessa iniciativa e venha ser parte também da história do cursinho Cora Coralina.
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